Lúcia Helena

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Reportagem

A pior forma de colesterol: já dosaram a sua LP 'azinha'?

O jeito mais certo de escrever seria Lp(a), mas os médicos leem assim mesmo: Lp "azinha". "Se o LDL é o colesterol ruim, a Lp 'azinha' é o colesterol perverso", me diz Eduardo Lima, líder da Cardiologia do Hospital Nove de Julho, em São Paulo.

Pois bem, este texto é para lhe apresentar "esse colesterol possuído" — em mais uma definição que ouço do médico, falando com sua cadência de cearense e com entusiasmo cada vez maior. Reconheço, a Lp "azinha" desperta paixões. Seu nome impresso na programação de congressos é capaz de lotar auditórios. E já vi doutores saírem deles bufando, frustrados por não conseguirem exorcizá-la. O que, antecipo, poderá mudar em breve.

O encosto que toma posse colesterol lembra uma correntinha de crochê pendurada — dá para ver na imagem? "Ela, é, inclusive, uma molécula fofa, viu? Se fosse uma pelúcia, nos enganaria", ironiza Eduardo Lima. Prazer! — prazer mesmo? Afinal, este penduricalho é a tal Lp "azinha" que deixa o LDL endemoniado, com uma capacidade seis vezes maior de formar placas. Tem cientista que a chama de proteína kringle, vendo semelhança com o pão de rosca dinamarquês.

Sob a possessão da Lp "azinha", o LDL comete ainda mais crueldades. Além das placas, passa a ter um efeito trombogênico, formando coágulos. Quanto menor a "correntinha" de Lp(a), mais terrível nesse sentido. E, endiabrado por ela, o colesterol também se torna tremendamente inflamatório. "É uma tríade do mal: aterosclerose, inflamação e trombose", resume o doutor que, seguindo faz tempo o que as diretrizes europeias preconizam, pede aos pacientes para dosarem a encapetada Lp "azinha" pelo menos uma vez na vida.

Os cardiologistas americanos só fazem isso quando a pessoa tem risco cardiovascular de moderado para cima, expondo-se, na opinião de Eduardo Lima, "à completa derrota, que é descobrir taxas elevadas de Lp(a) depois que o sujeito já infartou". Acho que você concordará com ele: descobrir um fator de risco que nasceu com você somente anos depois, ao sobreviver a um infarto, é de fato a mais completa derrota.

Uma vez na vida

Mais de 90% da Lp "azinha" que a gente tem é produzida no fígado e determinada geneticamente. Não, não depende da dieta. Se cortar a picanha do final de semana, ela nem se abalará. Tampouco diminui quando a pessoa sua em bicas na esteira. Você nasce com uma dosagem predestinada.

Por que o próprio fígado produz essa molécula tinhosa? A suspeita é de que, nos primórdios da evolução, ela tenha prestado serviços ao nosso sistema de defesa, disparando inflamação e facilitando o aparecimento de trombos diante de machucados. Hoje, porém, sua função é infernizar.

"Em um adulto, os níveis de Lp(a) variam muito pouco", explica o doutor. "Às vezes se alteram ligeiramente após uma infecção ou outro processo inflamatório qualquer, Mas logo voltam aos de sempre." É por isso que você precisa dosá-la uma única vez apenas. A informação é vitalícia. Ou seja, se o resultado é acima de 50 miligramas por decilitro de sangue, é encrenca por toda a vida.

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E, atenção, estima-se que esse é o caso de 18% dos brasileiros. Provavelmente por sermos um povo miscigenado: em média, os africanos e os afro-descendentes têm níveis mais altos de Lp(a).

Vale a pena dosar?

A questão é: o que os médicos fazem a partir disso? Por enquanto, a dosagem elevada só serve para deixar todo mundo esperto. É que ainda não existe droga capaz de baixar a Lp (a). Você pode até se entupir de estatinas. Então, o LDL que andar sozinho cairá. Mas aquele que foi possuído pela Lp "azinha" continuará assombrando as artérias.

Alguns cardiologistas ficam agoniados. Como dizer ao paciente que ele tem um risco cardiovascular alto e que não há nada a fazer? Daí que existe até quem discuta se valeria a pena dosar a Lp(a) para dar a má notícia. "Mas eu penso diferente", assume Eduardo Lima. "Até porque o médico pode fazer um rastreio em cascata."

O que ele quer dizer com isso: se o cardiologista descobre um caso, ele poderá pedir dosagens para a família inteira, sendo provável que encontre mais gente com Lp(a) nas alturas. O ideal seria tê-lo abaixo de 30 mg/dl. Acima de 50 mg/dl, já seria elevado. Entre uma dosagem e outra, é um limbo, significando risco intermediário.

"Certa vez, diagnostiquei Lp (a) alto em um paciente que tinha infartado. Sim, um exemplo daquela completa derrota", relembra Eduardo Lima. "Pedindo exames aos parentes de primeiro grau, encontrei Lp (a) alto no irmão, que já tinha placas nas artérias, mas não havia infartado. E o mesmo aconteceu com o filho de 15 anos, que ainda não tinha nada. Repeti ao menino aquela frase típica das mães: 'você não é todo mundo'. Expliquei que ele não poderia engordar, teria de fazer atividade física obrigatoriamente mesmo que seus amigos fossem para outro canto, não poderia desenvolver diabetes... Porque, afinal, esse adolescente tinha uma grande propensão à aterosclerose."

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A razão do diminutivo

A letra "a" virou "azinha" para a Lp(A) não se confundir com a apo-A no falar da Medicina. Ou — dando a sigla completa — para não se confundir com a apo A-1, a apoliproteína A-1.

O que é uma apolipoproteína? "É um cavalo, no qual o colesterol sobe", ensina Eduardo Lima. Na imagem que ilustra esta coluna, o colesterol é essa bola grudada na proteína, que aparece em azul mais escuro. Embora menor que a própria molécula de colesterol, é ela que o leva para cima e para baixo.

Pense: a gordura não é solúvel em água. Logo, precisa de uma proteína para galopar pelo sangue. "O risco vai depender do cavalo e do cavaleiro", explica o doutor. A tal apo A-1 costuma transportar o HDL, o colesterol bom. Uma ótima dupla!

Já a apo-B, ou apolipoproteína B, só carrega encrenca. Costuma se sentar sobre ela ou uma molécula de LDL ou uma de triglicérides. Se for triglicérides, até que menos mal. Já o LDL cai do cavalo a todo instante e fica derrubado nas paredes das artérias.

"Mas o pior é quando, na apo-B, quem se senta é uma Lp 'azinha'", insiste Eduardo Lima, lembrando que, se todos esses cavalos estivessem em um filme de faroeste, a apo A 1 seria o xerife e a apo B o cavalo do bandido, que pode ter uma pistola antiga (o velho LDL) ou ser um capeta carregando um fuzil (a amaldiçoada Lp "azinha").

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Bala perdida na válvula aórtica

Por falar nas maldades da Lp "azinha", uma das vítimas é a válvula aórtica, que a cada batimento do coração deveria se escancarar para o sangue oxigenado sair para a aorta, a principal artéria do corpo humano. Existem casos, porém, em que a vávula fica entreaberta, porque está toda calcificada. O problema é chamado de estenose aórtica, deixando a passagem do sangue estreita.

"Nos meus tempos de residência já sabíamos que essa condição acontecia em quem tinha LDL alto", lembra Eduardo Lima. "Daí que muitos colegas tentaram tratar esses pacientes com estatinas." Tiro n'água. Não deu certo porque, como já disse, estatina baixa LDL, mas não esconjura a Lp(azinha). "E hoje a gente sabe que é ela a culpada pela tal estenose aórtica", conta o cardiologista.

Um vade-retro na Lp "azinha"

As estatinas não só não fazem nada contra a Lp(a), como são capazes até de aumentar suas taxas em torno de 10 a 20%. Calma! Quem precisa de estatinas por causa do colesterol alto deve tomá-las, por favor! Ora, baixando drasticamente os níveis de LDL com essa medicação, a pessoa diminui o número de cavaleiros bandidos e de "cavalos" — a apo B — também. No final das contas, isso ajuda muito mais do que o aumento da Lp(a) atrapalha.

Mas a boa notícia é que já existem pelo menos cinco remédios sendo pesquisados, capazes de bloquear a receita da Lp(a) no fígado, evitando a sua formação. Com isso, observam-se reduções de 70% a 99 % nos níveis da moleculazinha demoníaca.

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O estudo com o primeiro desses medicamentos — o pelacarsen, da farmacêutica suíça Novartis — é, talvez, a maior promessa de 2025. Chamado de Lp(a) HORIZON, a torcida é para que ele prove, após ter acompanhado pacientes por quatro anos, que exorcizar a Lp "azinha" seria um excelente caminho para evitar infartos. Afinal, são indivíduos que já tomam remédios, como as estatinas, para proteger o coração. Será que haveria alguma vantagem adicional? Outro medicamento que deve publicar seus dados logo depois é o zerlasiran, da empresa americana Lilly.

Se tudo der certo, o organismo praticamente produzirá apenas o LDL comum. E, quando esse colesterol ruim não está atormentado pela Lp "azinha", as estatinas dão conta de espantá-lo, prevenindo eventos cardiovasculares.

Assim, a expectativa é de que, nos próximos anos, os cardiologistas não saiam mais de apresentações sobre a Lp "azinha" bufando e correndo, como quem foge daquela que vinha sendo a sua cruz.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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