Lúcia Helena

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Reportagem

A insulina semanal é realidade: troque 365 injeções ao ano por apenas 52

Pergunte a qualquer um dos mais de 500 milhões de indivíduos com diabetes no mundo — uns 20 milhões deles no Brasil —, se gostaria repor insulina diariamente ou só uma vez na semana. Aposto que ele ficaria com a segunda opção. Pois só de ouvir falar desse hormônio, logo pinica a lembrança de injeções.

Tudo bem que, faz um tempo, a velha seringa se transformou em uma caneta aplicadora com uma agulha minúscula e praticamente indolor. O problema é que há outras dores nessa história: fazer tanta espetadela caber direitinho na rotina para seguir o tratamento à risca é uma delas. Daí que a troca de 365 injeções ao ano por apenas 52 picadas é uma escolha fácil, em muitos sentidos. E, hoje, podemos de dizer que bem próxima de se tornar factível também.

Há mais de uma versão de insulina semanal prestes a surgir, dobrando a esquina das farmácias. E, na semana passada, durante o EASD 2024, o congresso da European Association for the Study of Diabetes, realizado em Madri, na Espanha, a farmacêutica Lilly apresentou não apenas um, mas um conjunto de estudos QWINT, avaliando a eficácia e a segurança da efsitora alfa, uma insulina para ser usada a cada sete dias. E ela se saiu muito bem, diga-se de passagem.

Em pessoas com diabetes tipo 2

A endocrinologista brasileira Denise Franco, pesquisadora do CPclin (Centro de Pesquisas Clínicas), da Dasa, é coautora de um desses estudos — no caso, do QWINT-2, realizado com 928 pacientes com diabetes tipo 2 que, até então, nunca tinham usado insulina na vida.

Metade usou a semanal efsitora e outra metade recebeu a degludeca, uma insulina já bem conhecida dos pacientes com diabetes que, apesar de ser prescrita para ser aplicada diariamente, tem ação prolongada e age durante cerca de 48 horas no organismo.

A versão semanal manteve a hemoglobina glicada abaixo dos 7%, o que era bem desejável. A hemoglobina é a tal proteína dos glóbulos vermelhos do sangue, a mesma que transporta o oxigênio. Mas, se há muita glicose da circulação, ela acaba se ligando à molécula desse açúcar, ganhando o adjetivo "glicada". Fácil entender que, quanto maior a quantidade de glicose circulando nos últimos meses, maior a porcentagem de hemoglobina glicada que o exame de sangue irá acusar. Mas, no caso aqui, isso se manteve sob controle.

Aliás, como os participantes fizeram monitoramento contínuo, com sensores colados no braço, os pesquisadores puderam notar que, entre aqueles do grupo da insulina semanal, o período na faixa adequada da dosagem glicose foi, em média, 45 minutos maior diariamente.

"Mas, atenção, em investigações assim ninguém quer mostrar a eventual superioridade de uma nova insulina", esclarece a doutora Denise. "A gente sempre a compara com as melhores alternativas existentes até o momento e o que se quer é que ela não seja inferior, ou seja, que alcance a mesmíssima eficácia e uma segurança idêntica" Ou seja, um empate técnico já está de bom tamanho. E foi o que o QWINT-2 mostrou.

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Diferentes tempos de ação

"Mas por que será, então, que eu preciso de mais uma forma de insulina, se já tenho opções eficazes?", é a indagação que a médica imagina passar pela sua cabeça. E, para responder, resume a evolução do tratamento para repor esse hormônio cujo papel, você sabe, é colocar a glicose para dentro das células para se transformar em energia. Lembre-se do detalhe: as suas refeições, no final das contas, viram glicose.

Toda a confusão no organismo de quem tem diabetes é porque o pâncreas ou não produz nadica desse hormônio — no tipo 1 da doença — ou libera uma molécula insulina que já não funciona direito, como acontece no tipo 2. Então, sem a chave que abriria as células, a glicose fica de fora. É quando a glicemia, isto é, a sua dosagem no sangue vai parar nas alturas.

"Substituir a insulina que o pâncreas produziria é o tratamento mais potente para baixá-la antes de causar danos à saúde", explica a médica. "O risco é que, se eu baixar muito, haverá uma hipoglicemia." Fato: se a glicose cai demais, a pessoa sua frio, fica tonta, enjoada, fraca, com a visão turva e confusão mental. E, se nada for feito, as complicações dessa quadro podem ser sérias. Em casos extremos, fatais.

A primeiríssima insulina, que surgiu há pouco mais de 100 anos, de certa forma seria como aquelas que os especialistas dizem ter ação rápida. Na verdade, era tão rápida que o sujeito precisava aplicá-la várias vezes por dia. Até que, lá pelos anos 1940, observaram que isso parecia um martírio. "Daí resolveram criar uma insulina de ação longa, que começou a ser aplicada uma única vez ao dia apenas", conta a endocrinologista.

Tudo resolvido? Que nada! Antes, quem tinha diabetes morria cedo. Mas, com o avanço do tratamento, os pacientes passaram viver mais, dando prazo para o surgimento de complicações típicas da doença mal controlada. O que poderia estar fora do controle? O divisor de águas foi um estudo realizado no início dos anos 1990, o DCCT. Ele mostrou que, se o objetivo era que a pessoa com diabetes vivesse mais e sem complicações, o tratamento deveria imitar da maneira mais fiel possível o que o pâncreas faz. Só que copiá-lo não é tão simples — e, sob certo ponto de vista, exigiria mais injeções.

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"Quando alguém que não tem diabetes olha para um prato de comida e sente vontade de comer, o cérebro já dá um sinal de estímulo para o pâncreas começar a secretar esse hormônio", descreve a doutora Denise. É a primeira fase de sua produção, quase um aquecimento.

Na sequência, se a pessoa dá a primeira garfada, inicia-se outra fase, em que a insulina é liberada na quantidade certa para aquele determinado alimento. Mas imagine o seguinte: e se algo aconteceu e ela acabou sem comer o que estava no prato? Entra outro hormônio pancreático na jogada, o glucagon, que tem um efeito oposto ao da insulina, liberando glicose no sangue e evitando a hipoglicemia. Tudo perfeitamente orquestrado.

"Pois bem: o que chamamos de insulina basal seria aquela que repõe a que o pâncreas liberaria quando a pessoa sente vontade de comer", ensina a médica. "Geralmente, quem tem diabetes tipo 2 aplica essa insulina diariamente e usa outros remédios para controlar sua condição. Já quem tem diabetes tipo 1, além de usar a basal uma vez ao dia, aplica outro tipo de insulina, a bolus, que é rápida, em cada uma das refeições para dar conta da glicose que será absorvida."

Isso, em tese, seria o caminho para a pessoa ter um bom controle da glicemia. "Mas, na prática, quando perguntamos ao paciente como está se cuidando, ele nem sempre faz todas as aplicações, nem calcula a dose certa. Nosso desafio, portanto, é a adesão ao tratamento. E é para tentar superá-lo que surgiram insulinas capazes de durar 20 horas, 48 horas?" E, agora, sete dias.

Risco de hipoglicemia?

A efsitora alfa é uma molécula de insulina modificada para ter uma liberação muito lenta. Uma vez injetada, fica na epiderme e vai caindo na circulação aos poucos, dia após dia. Mas — aí é que está — para essa façanha os médicos precisam prescrever uma dose bem maior, a rigor aquela que seria a soma da semana inteira.

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Não à toa, a doutora Denise, admite que, quando incluiu seu primeiro paciente no estudo, não sossegou. "Ligava para ele o tempo inteiro para saber se estava bem, se tinha se alimentado direito e, enfim, se não tinha apresentado hipoglicemia." Sua ansiedade refletia o medo de todos: o de que a dose mais elevada da efsitora alfa não fosse sendo liberada no ritmo adequado. Mas nenhum problema aconteceu — nem com esse participante do estudo, nem com qualquer outro, inclusive os do QWINT 5, que tinham diabetes tipo 1 e que, antes, usavam outra insulina basal.

Outros estudos da série QWINT fizeram comparações dos resultados da hemoglobina glicada e todos foram muito bons. Não que os especialistas não terão, ainda, um belo aprendizado pela frente — eles deverão ficar atentos. A questão da atividade física provavelmente exigirá maior cuidado de médicos e pacientes, para citar só um exemplo, até que todos entendam como, na prática, irá funcionar.

Quando você se exercita

Exercício físico, brinca-se por aí, é uma insulina que sai de graça. Ajuda a glicose em circulação a entrar nas células para abastecer a musculatura em ação. Logo, para os dias de treino, os médicos costumam prescrever uma dose mais baixa da insulina basal — como sempre, para evitar a hipoglicemia.

Nos estudos QWINT, porém, os participantes com diabetes no máximo se movimentaram com tarefas cotidianas e em caminhadas. E como será quando, na vida real, calçarem o par de tênis para correr ou passar horas na academia? Por enquanto, ninguém sabe. Mas nada que, a partir de uma boa observação, suplementos de carboidratos e ajustes na dieta não possam compensar.

"Sem dúvida, estamos diante de um tremendo avanço, porque a efsitora alfa simplificará demais a rotina de quem tem diabetes. E tenho certeza de que daremos conta de um aprendizado ou outro", opina a doutora Denise. Para ela, o futuro da insulina basal será por aí. As versões semanais deverão substituir as diárias e aquelas 365 picadas, nunca mais.

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