Lúcia Helena

Lúcia Helena

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

Anemia falciforme mostra: editar genes poderá ser o caminho daqui em diante

Há duas perspectivas ao se ver que o FDA (Food and Drug Administration), a agência que regula medicamentos nos Estados Unidos, aprovou duas terapias gênicas de uma só vez para tratar a anemia falciforme na última sexta-feira, dia 8.

Uma delas é a esperança de, um dia, resolver a vida dos que têm casos graves dessa doença que —contrariando o que disseram os americanos durante o anúncio da aprovação, referindo-se a ela como "rara"— é bastante comum entre nós.

Outra é deduzir que o acontecimento de agora —lembrando que os britânicos também aprovaram um desses tratamentos em 30 de novembro— marca uma nova era, em que mais e mais terapias que se baseiam na edição de genes serão aprovadas.

"Elas são uma tecnologia nova. Daí que todo mundo teve de aprender sobre o seu funcionamento nos últimos tempos, não só os pesquisadores, como as agências regulatórias. Agora, elas já têm um caminho facilitado para outras aprovações", pensa o médico Bruno Solano, especialista em terapia gênica da Fiocruz e do Idor (Instituto D'Or de Ensino e Pesquisa), em Salvador, na Bahia.

Por enquanto, os tratamentos que estão mais próximos de um pedido de aprovação são para outras doenças genéticas, essas sim, bastante raras.

Mas há quem busque na edição de genes a cura de infecções, como a pelo HIV, e até para a hipercolesterolemia familiar, que faz taxas de colesterol nas alturas serem indomáveis e que está por trás de até 10% de infartos e AVCs em pessoas abaixo dos 50 anos.

Relativamente comum no Brasil

Mais frequente em pessoas pretas e pardas —embora possa aparecer em qualquer um em uma terra como a nossa, com tantas gerações miscigenadas—, no Brasil a prevalência de anemia falciforme varia de região para região.

Mas, em geral, 4% da população brasileira carrega o gene com a sua mutação. Se você possui um só, herdado do pai ou da mãe, terá o que os médicos chamam de traço falcêmico e poderá gerar filhos com anemia falciforme, se o parceiro ou a parceira também ganhar essa herança.

Continua após a publicidade

Já quem herda um par de genes com a mutação —um deles vindo da mãe e outro, do pai—, apresentará uma alteração da hemoglobina, a molécula que transporta o oxigênio no sangue. Isso deformará os glóbulos vermelhos, que assumirão um formato de foice, enroscando-se com facilidade entre si, o que pode barrar o fluxo sanguíneo, especialmente nos pequenos vasos. A consequência é muita fadiga e dores lancinantes.

"Na Bahia, onde a população é majoritariamente negra, 1 para cada 650 bebês nascidos vivos tem essa anemia", conta o doutor Bruno Solano, que deverá voltar para o seu estado só para passar as festas de final de ano.

Fellow da iniciativa Ciência Pioneira, que apoia o desenvolvimento de cientistas brasileiros, ele hoje está na Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA), quebrando a cabeça em busca de maneiras de tornar o CRISPR-Cas9 (lê-se "crísper") mais barato e acessível.

Trata-se da técnica mais precisa de que se tem notícia para editar genes, utilizada por um dos dois tratamentos aprovados pelo FDA. Para você ter ideia, o Casgevy, terapia com CRISPR que ganhou o aval dos americanos e dos britânicos, chega a custar US$ 2 milhões.

Como funciona o CRISPR

Um dos dois tratamentos aprovados pelo FDA, o Lygenia, é o que os cientistas consideram uma terapia gênica tradicional, que usa um vírus como vetor para entregar um gene no núcleo das células.

Continua após a publicidade

"Mas a aposta maior é no CRISPR. Ele não insere um gene a mais no genoma, como faz a terapia tradicional. Em vez disso, corrige o código genético em um ponto específico, que é relevante para determinada doença", explica o doutor Solano.

Ou seja, corta esse pedaço que não interessa. Para isso, um de seus componentes é enzima chamada Cas-9. Ela é comparável a uma tesoura. A outra parte seria uma espécie de molde de DNA, espelhando o trecho que deverá cair fora. Ao se encaixar nele, serve de guia para mostrar à enzima Cas-9 onde deve ser o corte.

O que o tratamento aprovado tem de diferente

Primeiro, a pessoa com anemia falciforme recebe uma medicação que mobiliza suas células-tronco, aquelas capazes de originar outras células do nosso corpo. "Com o medicamento, elas saem da medula óssea e vão parar no sangue periférico. Daí, a gente as coleta pela veia", descreve o doutor Solano.

Levadas ao laboratório, essas células serão tratadas com CRISPR-Cas9. Mas, quem sabe, você cometa o mesmo engano que eu, que imaginei que o objetivo seria arrancar o trecho do genoma com a mutação responsável pela anemia falciforme. Não é isso. "Seria mais arriscado. Talvez o paciente não deixasse de produzir apenas a hemoglobina defeituosa e, sim, toda e qualquer hemoglobina", justifica o médico.

Por isso, optou-se por uma saída mais segura. No caso, o trecho que o CRISPR elimina é o BCL11A, que inibe uma molécula conhecida como hemoglobina fetal. Com maior capacidade de oxigenação, ela —como o nome já indica—, só é encontrada no feto e, depois que a gente nasce, sai de cena graças ao BCL11A, sendo substituída pela chamada hemoglobina adulta. "Só que essa hemoglobina adulta é defeituosa na anemia falciforme", lembra o doutor.

Continua após a publicidade

A ideia, portanto, é tesourar o o BCL11A, que estava inibindo a hemoglobina fetal, sem defeitos, para ela voltar a ser produzida no lugar da outra. "A melhora clínica após o transplante das células-tronco tratadas com o CRISPR é bem significativa", garante Bruno Solano.

Sim, depois de os genes serem editados, o paciente é internado no hospital e passa pelo mesmo processo de um transplante de medula óssea convencional. Ou seja, recebe uma quimioterapia para destruir a medula com a informação antiga e indesejada —a da anemia falciforme. Ela será repovoada pelas células-tronco editadas ou corrigidas, injetadas depois.

Edição feita no próprio corpo

Em Berkeley, Bruno Solano desenvolve pesquisas com anemia falciforme no IGI (Innovative Genomics Institute), criado pela bióloga molecular Jennifer Doudna, que, em 2020, foi uma das ganhadoras do Prêmio Nobel pelo CRISPR. "A missão do instituto é expandir o acesso a esse tratamento", conta o médico. "Tentamos simplificá-lo. Por exemplo, reduzimos a demanda por equipamentos caros", diz ele.

Mas, no futuro, o CRISPR para tratar a anemia falciforme e outras doenças talvez não continue tão personalizado, com os cientistas tratando as células de cada paciente em laboratório e gerando um produto único para cada um. O que, afinal de contas, tem um custo elevado.

A alternativa seria fazer do CRISPR um medicamento, produzido em larga escala para tratar muitas pessoas. As "tesourinhas" então, injetadas na veia, fariam o seu trabalho de edição de genes dentro do organismo. Os primeiros estudos indicam que poderá dar certo.

Errata:

o conteúdo foi alterado

  • A universidade em que Bruno pesquisa é a UC Berkeley, e não a UCLA. A informação foi ajustada.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

Só para assinantes