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Tumor cerebral: após décadas sem novidade, surge um tratamento promissor

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Há uns dois anos, quando participava de um congresso europeu, a oncologista clínica Helena Rodrigues de Andrade, do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, se dirigiu ansiosa a uma aula que prometia mostrar estudos sobre imunoterapia para tratar câncer de cérebro. Na ocasião, pensava: "Meu Deus, o que foi que eu perdi?!".
Isso porque, apesar de cuidar de pacientes com tumores cerebrais no dia a dia, ela não sabia o que seria anunciado ali. "Mas a primeira coisa que disseram foi: 'todos os trabalhos que vamos discutir foram negativos'" Ou seja, deram em nada.
Essa experiência só reforçou uma impressão da médica gaúcha: "A neuroncologia é o patinho feio da oncologia, uma subespecialidade praticada por um número pequeno de colegas dedicados a esses tumores malignos que representam apenas 1% de todos os cânceres em adultos".
A arma mais moderna com a qual esses oncologistas contavam até este ano de 2023 era a mesmíssima que tinham começado a usar ainda em 2001 para casos que eles chamam de alto grau, isto é, para tumores mais avançados. Portanto, já se iam 22 anos sem novidade alguma. "Nesse período, tudo o que tentamos não teve resposta", lamenta a médica.
Isso explica o entusiasmo de todos quando o encontro anual da Asco (American Society of Clinical Oncology), que aconteceu no mês passado em Chicago, nos Estados Unidos, deixou para a sua sessão plenária os resultados do estudo INDIGO, já em fase 3, isto é, quando uma droga está na reta final, a um pulinho de chegar aos pacientes. E ela, no caso, não é um quimioterápico, nem sequer um imunoterápico para o câncer cerebral.
Trata-se do vorasidenibe, medicamento que mira em mutações de dois genes, o IDH1 e o IDH2, e que, como uma boa terapia-alvo, consegue acertá-las em cheio, evitando a progressão do tumor por um tempo razoável.
Que os resultados deveriam ser bastante promissores, isso todo mundo já intuía antes mesmo de o neuroncologista Ingo Mellinghoff, do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York, subir no palco da Asco.
Vale uma explicação: a organização do evento deixa para apresentar em sua sessão plenária apenas estudos com maior potencial de impacto no tratamento do câncer. E, neste ano, abriu com o INDIGO.
Não à toa, quando cheguei para a cobertura desse encontro de mais de 40 mil oncologistas e saí perguntando o que, na opinião deles, eu não poderia perder de jeito algum, não importava se era um especialista em câncer urológico, de mama ou de pele — achavam em coro que, como eles próprios, eu deveria assistir ao que estaria acontecendo com o tratamento do câncer de cérebro.
Tudo indicava, diziam, que na tal sessão plenária viria coisa boa. E veio. Mas é preciso entender para quem é a novidade e o que ela realmente significa — adianto que não se traduz em cura e que não é para qualquer paciente. Ainda assim, mereceu os aplausos da plateia superlotada da plenária.
Quem foi tratado no estudo
A maioria dos tumores malignos que os médicos encontram no cérebro não surgiram nele propriamente. Em geral, são metástases de um câncer de outro órgão qualquer. "Mas quando o tumor é cerebral pra valer, originado ali mesmo, sabemos que estamos diante de uma doença das mais difíceis de tratar", diz o doutor Ingo Mellinghoff.
Os gliomas representam oito em cada dez desses cânceres. São tumores que se desenvolvem a partir das células da glia, as quais fazem de tudo para que nada falte aos famosos neurônios.
O estudo INDIGO envolveu 331 pacientes de diversos centros de oncologia do mundo com o chamado glioma de baixo grau e que tinham as tais mutações nos genes IDH1 e o IDH2. Todos haviam sido operados para extrair o tumor na cabeça de um a cinco anos antes, mas ou tinha restando um pouco dele por causa da localização ou a doença tinha voltado. Mesmo assim, estavam bem. Entenda: podiam aguardar um pouco mais para fazer rádio e químio, terapias que, nos gliomas, são reservadas até o momento de não ser mais possível viver sem elas.
"É uma doença de pessoas jovens, a maioria na faixa dos 40 anos", explica o neuroncologista do Memorial. "E essas pessoas enfrentam uma situação delicada, porque sabem que, apesar de progredir lentamente, o tumor de baixo grau não para de crescer, sendo que radioterapia e a quimioterapia usadas para combater os gliomas são altamente tóxicas, causando danos inclusive ao próprio cérebro."
Por isso é que, depois da cirurgia, só resta esperar o momento em que o tumor volte ou que cresça a ponto de, colocando-se na balança, valer a pena encarar os efeitos nocivos do tratamento disponível, que hoje é deixado para pacientes com glioma de grau 3 ou 4.
"Em algum momento, o glioma de baixo grau irá avançar para um grau 3 ou 4", esclarece a doutora Helena, do Moinhos de Vento. "Isso costuma levar de dez a 15 anos e, bom dizer, não adiamos a rádio e a quimioterapia só por causa da toxicidade, mas porque podem causar mutações capazes de tornar o tumor resistente. Logo, se usarmos o que temos em mãos muito cedo, ficaremos sem ter o que fazer depois."
O resultado espetacular
O INDIGO é o que os cientistas chamam de estudo duplo-cego randomizado. Randomizado significa que os participantes foram sorteados para formarem dois grupos. "E duplo-cego porque nem eles, nem nós, os médicos do estudo, sabíamos quem tinha caído em qual turma", descreveu o doutor Mellinghoff.
Um dos grupos, com 168 pacientes, tomou em ciclos de 28 dias um comprimido diário de vorasidenibe — sim, é um medicamento oral! Os outros 163 indivíduos receberam um placebo, isto é, um remédio falso. "A análise dos resultados mostrou diferenças tão gritantes que, por questão de ética, em março deste ano interrompemos a fase cega do trabalho e ficamos sabendo quem estava no segundo grupo para que esses pacientes passassem a ser tratados com o vorasidenibe também."
É justo. Afinal, em quem recebeu a terapia-alvo, o tumor levou, em média, 27 meses quieto, sem crescer 1 milímetro. Já nos indivíduos sem a medicação, a doença começou a progredir em menos da metade desse período — em 11 meses.
"O estudo também avaliou quanto tempo, após a doença voltar a progredir, os pacientes permaneciam sem precisar de químio ou rádio", acrescenta Helena de Andrade. O intervalo com a terapia-alvo foi significativamente maior: com ela, a probabilidade de o paciente não necessitar desses tratamentos mais tóxicos nos dois anos seguintes foi de 83,4%, contra 27% do grupo sem o vorasidenibe.
Como age a nova droga
"O vorasidenibe, ao inibir as mutações daqueles dois genes, diminui em até 90% a concentração uma substância de nome complicado, a 2-hidroxiglutarato", explica a doutora Helena. "Com isso, ela para de lesar o DNA, levando àquelas alterações que fazem as células malignas continuarem crescendo."
A médica definiu como "chocantemente tranquilo" o perfil de toxicidade do novo medicamento. De fato, apenas 20% dos pacientes se queixaram de efeitos adversos como um pouco de fadiga, dores de cabeça leves e náuseas.
Como nem tudo é perfeito, além do obstáculo do valor — o zunzunzum é que não será um tratamento acessível —, é preciso sublinhar que o vorasidenibe não cura. Mas estende a vida e de tal jeito que a pessoa segue com sua rotina normal.
Não é para todo mundo
Helena de Andrade ainda estava no evento da Asco quando começou a receber mensagens: "É para mim, doutora?". Com delicadeza, tinha de explicar que a terapia-alvo com vorasidenibe, além de não ter data para chegar ao Brasil, não é para todo mundo diagnosticado com um glioma.
"O indivíduo precisa ter mutações naqueles dois genes", lembra a oncologista. Levantamentos apontam que mais da metade dos pacientes com tumor cerebral têm. Mas, de volta ao país, quando foi olhar os exames de seus pacientes, estranhamente não as encontrou em nenhum deles.
Outro ponto é que a maioria dos casos que aparecem no consultório do oncologista é de grau 3 ou 4, quando a terapia-alvo já não serve, porque a concentração da tal 2-hidroxiglutarato é mais importante em estágios anteriores.
Entre os primeiros sintomas da doença estão dores de cabeça pelas manhãs; alterações de fala, incluindo dificuldade para encontrar uma palavra e, frequentemente, crises convulsivas. "Mas nem toda convulsão é aquela 'de novela', como a pessoa caindo tremendo e enrolando a língua", avisa a médica. "Às vezes, pode ser uma ausência que não dura mais do que 2 minutos", ilustra. "Ou a percepção de cheiros estranhos", dá mais um exemplo.
No entanto, não é por ignorá-los que as pessoas chegam mais tarde diante do oncologista. Muitas vezes são operadas e nem são encaminhadas, porque a ideia corrente é de que não há o que fazer nessa longa fase inicial do glioma. O acompanhamento do especialista em câncer, porém, sempre pode fazer muita diferença. Ainda mais agora, já que a aprovacão do novo tratamento não deve demorar.
* A colunista viajou para cobrir a Asco a convite de Bayer Brasil.
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