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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Aspirina: não caia na polêmica de que ela aumentaria riscos para o coração

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

05/01/2023 04h00

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Foi noticiado lá fora e também repercutiu na imprensa brasileira: pesquisadores da Universidade de Leuven, na Bélgica, publicaram um artigo na revista da Sociedade Europeia de Cardiologia afirmando que tomar aspirina não apenas seria uma atitude completamente inútil para prevenir encrencas em pessoas com risco cardiovascular como até aumentaria em 26% a propensão de elas desenvolverem insuficiência cardíaca. Pra quê!

Acendeu-se o pavio da polêmica e a bomba explodiu nas mãos de gente com doença coronariana que faz uso diário do remédio com prescrição médica e que, compreensivelmente, ficou bastante assustada. À toa — vou logo avisando.

"Sem o olhar de quem conhece ciência, esse trabalho leva a um.problema de interpretação", avisa o cardiologista Andrei Sposito, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), que publicou na mesmíssima revista dos europeus, por doce ironia, uma cuidadosa metanálise — no caso, a comparação de quatro grandes estudos sobre o tema —, assinando ao lado de colegas de outras instituições, como a UCB (Universidade Católica de Brasília) e a UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

Os cientistas brasileiros mostram que não é bem assim. É preciso voltar alguns passos para todo mundo compreender essa história.

Depois de um infarto

O ácido acetilsalicílico, nome do princípio ativo da velha aspirina, é reconhecido desde os anos 1980 por reduzir a mortalidade de quem já sofreu um infarto. E sobre isso não há muita discussão.

"Ele evita que as plaquetas do sangue se agreguem, o que é a etapa fundamental para formar um trombo". O coágulo seria capaz de obstruir a passagem da circulação em uma artéria do coração, por exemplo. Daí, já viu, é um infarto.

Entenda: o músculo cardíaco nunca sai dele como se nada tivesse acontecido. A área que ficou sem ser abastecida de sangue oxigenado não volta a ser a mesma. O resultado é uma perda de força para bombear a circulação — a tal da insuficiência.

Diga-se de passagem que, tirando amor não correspondido, tudo o que faz o coração de alguém sofrer — não só o infarto — termina em insuficiência cardíaca. E ela mata metade dos pacientes em cinco anos.

Portanto, voltando ao comprimido de aspirina, ao evitar um trombo, ele impede que um coração já castigado sofra outras vezes, complicando esse quadro. Para esse grupo de pacientes, temer o remédio por ter ouvido falar das "revelações" do estudo feito na Bélgica é o que pode aumentar o risco, isso sim.

E antes de o sujeito infartar?

O estudo belga, aliás, não é o primeiro a levantar a desconfiança de que a aspirina pode fazer mais mal do que bem. A confusão começa quando os cientistas tentam entender qual seria o benefício desse remédio antes de um infarto propriamente dito.

No passado, surgiu uma onda de que qualquer um deveria criar o hábito de engolir uma aspirina todo santo dia para proteger o coração. E, não, ela não vai ser a protetora do peito de quem é saudável e não tem muita probabilidade de desenvolver uma doença cardiovascular. Logo, sem a menor indicação, o uso constante só irá elevar o risco de hemorragias, entre outros estragos.

"No Brasil, essa ideia de uma ação protetora virou de domínio leigo e, pior, aqui temos a aspirina infantil", comenta Sposito. "Aí mesmo é que as pessoas acham que tudo bem se automedicarem porque, afinal, a dose seria baixinha, até criança poderia tomar sem qualquer prejuízo. É um enorme engano. Para um adulto, a dose pode ser baixa para ele obter o efeito anti-inflamatório que esse remédio tem. Mas já é suficiente para um bloqueio total de suas plaquetas."

Portanto, nunca é para engolir ácido acetilsalicílico a troco de nada. Muito menos diariamente.

No entanto, existe uma zona cinzenta — a das pessoas que ainda não infartaram, mas que acumulam uma série de fatores para isso acontecer mais dia, menos dia. "Ser de meia-idade ou até mais velha, apresentar um colesterol alto, ter hipertensão... Tudo isso conta pontos, assim como o resultado do exame de escore de cálcio e o ultrassom da carótida para avaliar as placas nas artérias", exemplifica Sposito.

Os cardiologistas usam essas informações para estratificar o risco de cada um — o meu pode ser maior do que o seu, ou vice-versa. Se ele é nas alturas, muitas vezes os médicos consideram receitar a aspirina diária, enxergando a possibilidade de um infarto dobrando a esquina, com a insuficiência cardíaca de carona.

A estratégia de usar a aspirina antes do infarto — o que em Medicina é chamado de prevenção primária — é que está na berlinda. Alguns pesquisadores apontam pouca vantagem diante de efeitos colaterais. Valeria, então, a pena?

"Nessa decisão, os meus colegas americanos ainda estão em cima do muro", conta Sposito. "Já os cardiologistas europeus, vendo que tinham de escolher entre o risco de sangramentos gastrointestinais e o de um infarto que provavelmente não será fatal, entenderam que não faria sentido trocar uma doença por outra." Ou seja, na Europa as diretrizes já não recomendam a aspirina para pacientes com alto risco, mas que nunca infartaram.

Só que, em países em desenvolvimento como o Brasil, o cenário é outro — o infarto ainda mata um bocado e os casos de insuficiência cardíaca, por diversos fatores, aumentam sem parar. Então, antes de descartar a alternativa, é preciso olhar com mais carinho para a aspirina nos casos em que o risco cardiovascular é estratosférico.

Quando o risco é relativo

Os cientistas de Leuven — aqueles que acusaram um aumento do risco, na direção oposta do resultado esperado — olharam para os dados de 30 mil americanos e europeus com idade média de 67 anos para ver o possível efeito da aspirina na prevenção da insuficiência cardíaca. É, de fato, um número de pessoas pra lá de razoável.

Um quarto delas relatou que engolia o comprimido diariamente para evitar problemas do coração. Assim, os pesquisadores compararam quem tomava e quem não tomava o remédio. Daí, observaram o tal aumento de 26% no risco de insuficiência cardíaca propagado na mídia leiga. Mas — opa! — falta o um adjetivo aí que faz total diferença: eles falavam em risco relativo. Re-la-ti-vo.

Andrei Sposito faz uma analogia: "Você ouve que o preço das coisas aumentou 26% e deduz, só a partir dessa informação, que tudo ficou caro demais para conseguir pagar. Mas, se for o valor de um palito de fósforo, ele continuará sendo barato mesmo assim. Já se for um carro, talvez essa diferença o torne caro demais para as suas economias."

É isso: o risco relativo depende do ponto de partida de cada um, se já tinha sinais da doença ou não, o que os belgas não têm a mínima noção. "Eles usaram um banco de dados que já existia", lembra Sposito.

Explico: as 30 mil pessoas tinham participado originalmente de outro estudo, o qual não foi planejado para avaliar o uso da aspirina. "Por isso, não ficou registrado há quanto tempo usavam o remédio, se já tinham ou não sinais de insuficiência e — algo importante de saber — se elas tomavam o comprimido por conta própria ou se tinham passado no médico", diz o cardiologista.

Pense: quem passa pelo médico e sai com uma receita de aspirina supostamente já tem algum problema nas coronárias. "Sendo assim, sem o remédio haveria uma explosão de infartos nesse grupo e um aumento ainda maior do risco de insuficiência."

O artigo belga ainda arrisca hipóteses a respeito dos motivos pelos quais a aspirina causaria mais insuficiência cardíaca. Aponta, por exemplo, a anemia provocada por eventuais sangramentos no trato digestivo — e, sim, um sangue anêmico piora a situação para o músculo cardíaco.

Para Sposito, porém, hipóteses assim servem de papo para elevador. "Seria preciso um sangramento muito grave para mexer com o ferro e, por sua vez, a anemia deveria ser crônica para interferir no coração", garante o professor da Unicamp. A ameaça de a aspirina deixar a situação chegar a esse ponto é remota.

Um aumento discretíssimo no risco

Em sua metanálise, Sposito e colegas se debruçaram, primeiro, sobre 1909 trabalhos, mas descartam a maioria deles justamente porque tinham uma falha aqui, outra lá.

"Queríamos comparar dados de estudos randomizados, isto é, em que as pessoas tivessem sido sorteadas para tomar aspirina ou um remédio falso, mas sem saberem se estavam em um grupo ou em outro para não haver qualquer interferência", explica.

No final, a análise foi de quatro estudos envolvendo um total de 40.418 pacientes. E a conclusão é tranquilizadora: é menor do que 1% a probabilidade de o risco de insuficiência cardíaca aumentar e, mesmo assim, nunca tanto quanto os belgas apontaram.

O importante, como ressalta o cardiologista, é você procurar orientação do seu médico ao ler qualquer coisa diferente sobre a medicação que está usando antes de tomar a decisão de abandoná-la. Aliás, o recado não vale só para aspirina.