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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Varíola dos macacos: o que pode ser exagero e quais as reais ameaças

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

28/07/2022 04h00

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Ninguém vai dizer que é para não dar a mínima bola para uma infecção que de maio deste ano — quando a Europa registrou uns 80 casos — até ontem, dia 27, já somava 18 mil diagnósticos pelo mundo, sendo 978 deles no Brasil. Foi mesmo um salto de respeito, vamos desdenhar? Claro que não.

Nesta altura, quem tem juízo sabe que é melhor ouvir a OMS (Organização Mundial de Saúde) se ela manda a gente ficar esperto. Foi o que aconteceu no sábado, 23, quando a varíola dos macacos foi decretada uma emergência global.

Mas daí a temer que o monkeypox, o vírus da vez, seja "feito um Sars-CoV-2", ah, sossegue: ele não é. Você não irá pegá-lo em uma ida à padaria da esquina.

Loucura é acreditar que ele pode escolher seus hospedeiros por orientação sexual, só porque até o momento a maioria dos casos aconteceu em homens que tiveram relações com homens. Essa ideia, além de criar um perigoso equívoco com o qual a OMS se preocupa, reforça um mal tão antigo quanto essa família de vírus — a praga do estigma.

Aliás, o preconceito soa ainda mais sem pé nem cabeça justamente por se tratar dessa família numerosa e que tem até um nome gracioso: poxvírus. É uma turma versátil, que se apega quase a qualquer um e infecta tudo quanto é bicho — o bicho homem incluído, óbvio. Homem, mulher, gato, papagaio...

O que os poxvírus têm em comum

"Existem poxvírus para todos os mamíferos", esclarece José Eduardo Levi, biólogo molecular e virologista da melhor cepa de cientistas brasileiros, hoje à frente da área de pesquisa e desenvolvimento da Dasa, uma das principais redes de saúde integrada do país.

"Na verdade, aves, animais marinhos, até insetos pegam poxvírus", diz Levi. Apesar de eles serem bem variados entre si, uma coisa têm em comum: causam as tais vesículas, bolinhas, bolhinhas. Enfim, aquilo que os ingleses chamam de "pox".

Guardam ainda a lembrança do parentesco pelo formato de tijolo. E, na perspectiva da virologia, são todos grandalhões com seus 300 nanômetros de comprimento, isto é, 300 bilionésimos de metro, chegando a ser dez vezes maiores do que um rinovírus, como o do resfriado. "Em tamanho, só perdem para os vírus do herpes", compara Levi.

Mas é uma terceira característica em comum que você mais precisa entender: "A transmissão entre espécies é relativamente frequente", ensina Levi. Nada de novo, portanto.

Aliás, vale repetir a reparação histórica de que a tal varíola dos macacos é originalmente de ratos. Os símios, pobres coitados, entraram de gaiatos na história. Como nós.

Vírus de Cantagalo, vírus Araçatuba...

Já ouviu falar? No Brasil, já ocorreram surtos de alguns poxvírus que deixaram ordenhadores com as famosas bolhinhas pelo corpo, contaminados pelas feridinhas nas tetas das vacas. O Cantagalo, por exemplo, identificado no Rio de Janeiro, teve 80 casos confirmados em 1999.

"O curioso é que a origem de todos eles foi o vírus atenuado da vacina da varíola, que chegou no país na década de 1920", conta Levi.

É que, naquele tempo, as pessoas jogavam os frascos usados do imunizante na natureza. Resultado: o vírus atenuado que existia ali ganhou força em algum animal silvestre. Um dia passou para o gado e, do gado, para o ordenhador.

"Mas, se por um lado esses vírus passam com relativa facilidade de um animal para outro, em compensação quando a gente é infectado por um deles, isso confere certa proteção contra toda a sua família", diz Levi.

Isso leva a gente a compreender por que não vimos um cenário como o de hoje no passado. Sim, as pessoas viajam mais, transitam mais. Mas não podemos nos esquecer também que, até 1980, nós éramos vacinados contra a varíola humana, doença cruel, capaz de matar quase um terço dos infectados e que, felizmente, sumiu da face da Terra.

No fundo, os anticorpos contra a varíola humana nos defendiam contra outros poxvírus. Com a aposentadoria dessa vacina, ficamos sujeitos a eles. A ficha caiu agora.

Não passa com facilidade pelo ar

O que é diferente pra valer é a forma como a doença está se espalhando. "Aí, sim, é algo que nunca aconteceu antes", reconhece Levi, diante da escalada de casos.

Isso levanta a pergunta: o vírus mudou ou é apenas um azar danado? Talvez, as duas coisas.

"A transmissão é pelo contato com a ferida ou com objetos onde a pessoa doente encostou", afirma, seguro, o virologista. "Os artigos científicos até falam da hipótese de transmissão respiratória, como na varíola humana. Mas claramente não é o caso desse vírus de agora." Por isso, você não irá pegar em uma ida à padaria, entende?

Você precisaria chegar muito perto de alguém com as bolhinhas, por relativamente muito tempo, e aspirar partículas das casquinhas das lesões.

Mesmo sabendo que isso pode acontecer em situações, digamos, íntimas, é bem mais provável que, na hora do chega-mais, você acabe encostando em uma ferida. Aí, se tocou, é transmissão garantida.

Lesões nos genitais

Médicos e pesquisadores observam que, nos casos atuais, as lesões costumam surgir primeiro nos genitais. Antes, apareciam no rosto até de se espalharem por todo o corpo.

"Isso, em si, não significa uma manifestação diferente", pondera Levi. "Sabemos que as lesões podem dar as caras na região do corpo que teve contato com o ferimento na pele do outro."

Ou seja, pode ser porque boa parte dos indivíduos, como mostra um recente estudo publicado no New England Journal of Medicine, se contaminou após uma relação sexual com uma pessoa infectada.

O vírus está mais rápido?

"Na real? Ninguém sabe", responde Levi. Festas com sexo sempre existiram. Não é de hoje que as pessoas viajam de um continente para outro. E só desta vez o monkeypox fez tantas vítimas.

Para a gente sentir a dificuldade, Levi conta que até hoje, apesar de todos os recursos da ciência, os cientistas olham para mutações dos genes e não entendem por que a variante do Congo é bem mais agressiva do que a da África Central.

Portanto, mais complicado ainda seria identificar que mutações estariam fazendo esse vírus passar com maior desenvoltura de uma pessoa para outra só pelo contato com pele.

Pode ser só uma infeliz coincidência?

Pode. Na Nigéria, entre 2016 e 2017, ocorreu um baita surto. E, desde então, as coisas nunca sossegaram de vez. "Talvez, não tenha acontecido nada assim antes porque, nas baladas de verões europeus passados, não havia um surto no continente vizinho, pensando que talvez só não tenham explodido casos ali antes por causa do isolamento social da pandemia."

Por que a OMS se preocupa

O surto recente na Nigéria, lembra Levi, aconteceu principalmente entre indivíduos soropositivos para HIV. "Isso é sinal de que pessoas com algum grau de imunossupressão são mais vulneráveis", explica.

E o mesmo, acredita, deve valer para idosos, crianças, portadores de comorbidades — grupos que, ao lado de profissionais de saúde que acabam tocando nas vesículas dessa varíola ao examinar os pacientes, devem ser prioritários quando a vacina da varíola humana for retomada. Para proteger, por tabela, contra a dos macacos ou a do que for.

Até lá, levando em consideração que produzir vacinas não será tão fácil em um mundo pressionado para imunizar a população de todos os cantos contra a covid-19, declarar emergência é induzir todo mundo a ficar mais cuidadoso para não se perder o controle da situação, isto é, para que essa doença não se espalhe para esses outros grupos nos quais podem ocorrer complicações. Aliás, tomara que ela não se espalhe entre mais ninguém.

A importância de testar

Para conter a ameaça, é fundamental isolar quem está doente. "E uma complicação é que as feridas podem se assemelhar às do herpes genital e mesmo às da sífilis", explica Levi.

Seu time, na Dasa, está lançando na próxima segunda-feira, dia 1º, um teste de PCR para flagrar o vírus varíola dos macacos, batendo o martelo no diagnóstico. No caso, o famoso swab, aquela espécie de cotonete, será passado na secreção que escoa das bolhinhas ou, até melhor, nas casquinhas. "Elas têm vírus pra caramba", conta Levi.

Sangue? Não vale. O vírus da varíola dos macacos só fica em boa quantidade na circulação para ser flagrado enquanto está incubado, por um período de vai de cinco a 14 dias. Nessa fase, a pessoa nem tem sintomas, então não faz sentido. A ideia não é sair fazendo o rastreamento de todo mundo que cismou estar em perigo.

Mais eficiente do que isso é higienizar sempre as mãos e, acima de tudo, procurar se manter quieto em casa — pelo sim, pelo não — ao sentir sintomas como fadiga, febre, quebradeira, que sempre aparecem antes da varíola dos macacos dar na cara ou em outros cantos, você sabe quais.