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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Compulsão alimentar: muitos ignoram o problema, que pode ter a ver com TDAH

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

19/07/2022 04h00

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Tem gente que, em um intervalo curto, ingere uma quantidade relativamente grande de comida. Quer dizer, às vezes a porção em si nem é tão imensa, mas o sujeito a encara como excessiva.

Em outras palavras, tem gente que parece comer mais em menos tempo, se comparada a outras pessoas na mesmíssima situação — e que sofre à beça, porque a sensação é de que não tem o menor controle. Vem no cardápio a raiva, a culpa e a baixa autoestima como sobremesa.

Esse é um modo de começar a definir a compulsão alimentar, descrita ainda em 1959, mas que no princípio foi muito associada à bulimia — quando as pessoas, por assim dizer, batem um pratão e provocam vômito logo depois.

Só há menos de dez anos, em 2013, o transtorno de compulsão alimentar, ou TCA, foi reconhecido como um problema completamente distinto. Diga-se que, dos transtornos alimentares em adultos, ele é o mais comum: de 2% a 4% da humanidade têm. Por baixo.

Não me pergunte o motivo, mas a prevalência é maior no Brasil, de acordo com um levantamento da OMS (Organização Mundial da Saúde). Em uma amostra de 2.942 pessoas de São Paulo, 4,7% experimentaram episódios de transtorno de compulsão alimentar ao longo da vida; 1,8% delas, nos últimos doze meses.

Mas, se for para falar de números, fiquei espantada com os que vi na apresentação do psiquiatra Luiz Henrique Junqueira Dieckmann durante o EndoDEBATE 2022, evento que, na semana passada, reuniu mais de 3 mil médicos para discutir questões ligadas ao diabetes e à síndrome metabólica.

"Em um estudo chamado VALIDATE, envolvendo mais de 22 mil adultos, 344 indivíduos preenchiam perfeitamente os critérios de TCA. No entanto, só 11 deles, ou seja, 3,2% tinham recebido esse diagnóstico", disse ele. É preocupante.

O risco de ignorar o transtorno

E é assim em todas as pesquisas científicas feitas por aí: menos de 5% daqueles que têm TCA conhecem a sua condição. O resto continua angustiado e adoecendo, ignorando o seu diagnóstico.

Só que, de episódio em episódio, o TCA pode elevar a pressão arterial, o colesterol, os triglicérides e a glicemia, prejuízos que costumam surgir mesmo entre aqueles que não ganham tanto peso.

O transtorno também cria uma sensação de incapacidade que mina a confiança para trabalhar e atrapalha a vida social ou em família. Ao menos, é o que relatam seis em cada dez portadores de TCA.

Nem sempre é como imaginamos

"Nem toda pessoa com TCA é aquela que ataca um bolo inteiro no meio da noite", me explica Luiz Dieckmann depois. "Pode ser aquele indivíduo que decidiu ser vegano e que, nos episódios de TCA, devora uma picanha, sentindo-se derrotado em seguida." Ou ainda quem, apesar de magro, tem diabetes e se esbalda em doces.

Ex-preceptor da pós-graduação em psiquiatria da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e à frente do BIPP, sigla em inglês para Instituto Brasileiro de Farmacologia Prática, comunidade dedicada ao ensino de neurociências a profissionais de saúde, ele acrescenta que existem pacientes com TCA sem excesso de peso.

No entanto, cerca de 25% dos indivíduos com muitos quilos a mais têm TCA . Portanto, essa questão de saúde mental merece atenção no enfrentamento da epidemia de obesidade.

Critérios para flagrar o TCA

Além daquela questão de comer muito em pouco tempo e perder o controle, os psiquiatras detectam esse transtorno quando a pessoa preenche pelo menos três de cinco critérios.

O primeiro deles é comer rápido demais. Outro é consumir alimentos até o ponto de se sentir mal, com a barriga muito cheia e, se duvidar, com vontade de desabotoar a roupa.

Um terceiro é ingerir grandes quantidades de comida sem estar com fome, com o olho maior do que a boca, como se diz por aí.

"Também acende o alerta se a pessoa relata que, constrangida, se alimenta sozinha ou escondida, porque já prevê comentários a respeito da quantidade em seu prato", explica Dieckmann. "Frequentemente, ela se serve de comida fria na geladeira para ser rápida e não ser pega no pulo." O último critério é sentir-se enojado, deprimido, arrependido após a compulsão.

O que sugere a gravidade

Os médicos avaliam a frequência dos episódios. "Claro que ninguém aqui está falando em meter o pé na jaca de vez em quando, o que acontece com todo mundo ocasionalmente durante uma viagem, na visita àquele restaurante especial ou em uma festa", diferencia Dieckmann.

No TCA, os episódios são regulares. Quando eles se repetem de uma a três vezes por semana, o caso é considerado leve. "E, aí, nós não cogitamos medicamentos, mas acompanhamento multidisciplinar, com psicólogos e nutricionistas, entre outros profissionais, para fortalecer o autocontrole e promover mudanças no estilo de vida."

O quadro é tido como moderado, já precisando de remédio, quando ocorrem de quatro a sete episódios semanais. Grave, quando se repetem de oito a treze vezes por semana e extremo, se somam catorze ou mais nesse período.

Associação com o TDAH

Estudos apontam que quase 80% das pessoas com TCA não têm só isso — como se fosse pouco."Podemos classificar doenças psiquiátricas e dar nomes, criando critérios de diagnóstico, mas nosso cérebro não respeita esse limite", afirma Dieckmann. "Quem apresenta TCA com frequência também sofre de transtornos de humor, como depressão ou ansiedade, ou têm outros quadros em que há dificuldade para controlar os impulsos, como o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, o TDAH. Esta associação, aliás, não é rara."

A razão é simples: Os circuitos neurais e os neurotransmissores por trás dos sintomas são compartilhados entre esses problemas. Daí a importância de reconhecer tudo o que está se passando. "Ou na hora de tratar, se por acaso a gente olhar só para a questão alimentar ou, muitas vezes, pensar só em emagrecimento, caçamos vampirinhos e deixarmos de lado justo o Conde Drácula", avisa o psiquiatra.

Muitas vezes, é preciso combinar medicamentos. Hoje, há uma droga específica aprovada para TCA, a lisdexanfetamina — uma molécula de anfetamina ligada a um aminoácido que retardaria sua absorção e, desse modo, evitaria antigos efeitos colaterais. "O remédio é eficaz e seguro, mas alguns pacientes não precisam ser tratados com ele ou só com ele", afirma o médico.

No cérebro

É a região cerebral do hipotálamo que controla a nossa vontade de comer. Só que, no mundo para o qual nosso organismo foi desenhado em tempos ancestrais, o consumo de alimentos seria sob medida para as necessidades de energia e de nutrientes a cada momento, graças a informações trazidas por hormônios como a insulina, a grelina por trás da fome e a leptina, que desencadeia a saciedade.

O cérebro, claro, também capta informações sensoriais que são capazes de ativar o seu sistema de recompensa, onde impera um neurotransmissor chamado dopamina. É a promessa do prêmio que incentiva a cabeça a buscar o alimento.

"Se estou diante de um nhoque, ao sentir o cheiro ou até mesmo ao relembrar o gosto, passo a salivar de vontade", exemplifica Dieckmann. "No entanto, existem regiões do meu cérebro que mandam eu esperar por essa recompensa ou, então, parar de comer após uma ingestão adequada, desativando o meu impulso para correr atrás de mais prazer."

Entre essas regiões, está o córtex pré-frontal, bem atrás da nossa testa. É ele, especificamente, que também se encontra envolvido no TDAH. "Por isso, pessoas com déficit de atenção e hiperatividade não conseguem adiar muito uma recompensa", afirma o psiquiatra. "Na evolução das espécies, era ótimo existir gente assim, que saía da caverna para caçar e que levava comida aos outros, mesmo correndo perigo, por não suportar a ideia aguardar um tempo sem satisfazer o desejo de comer."

Nos dias de hoje, quem sente fome não precisa caçar. Ao contrário, encontra fácil comida formulada para disparar cada vez mais o sistema de recompensa. Mas sabe aquela história de que, quanto mais alto, maior o tombo?

Comida ultraprocessada

Dieckmann faz a comparação com a folha de coca, que os povos andinos mascam: "Ninguém fica viciado nela. Mas a pasta feita a partir da folha libera mais dopamina. O pó, esfregado na mucosa ou aspirado, dispara mais dopamina ainda e muito mais depressa. Depois, na mesma velocidade, esse neurotransmissor cai, criando no indivíduo uma baita necessidade de senti-lo subir novamente."

Onde o psiquiatra quer chegar: no cérebro, tudo o que há na natureza tende a fazer a dopamina a subir devagar e a descer sem pressa, mantendo o nosso sistema de recompensa em uma zona de conforto.

"A comida ultraprocessada, porém, tem uma combinação que não costumamos encontrar naturalmente: muito açúcar e muita gordura ao mesmo tempo", nota. De fato, frutas muito doces não são gordurosas. Enquanto um abacate, que tem gordura, não é tão doce, por exemplo.

"Não tem como concorrer: esse combo lança a dopamina para o alto e a compulsão vai junto", nota o psiquiatra. Por isso que ninguém com TCA se empanturra de salada. O alimento tal qual existe na natureza nunca colocará a dopamina em um foguete.

Sozinho, claro, o ultraprocessado não causa o TCA. Mas sua presença tampouco facilita a vida de quem sofre dessa compulsão e que, às vezes, nem discute isso com o médico, engolindo a seco a angústia e mal digerindo os problemas de saúde que o transtorno alimentar pode lhe causar.