Topo

Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Miocardite: surgem novas diretrizes sobre o jeito de diagnosticar e tratar

iStock
Imagem: iStock

Colunista do UOL

12/07/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Miocardite é um termo que está na boca do povo. Afinal, integra o vocabulário que adquirimos durante a pandemia.

O Sars-CoV-2 ensinou uns e lembrou outros que o coração pode inflamar pra valer. E que, embora isso se resolva sozinho na maioria das vezes, existem indivíduos que, ainda mais quando desavisados, têm complicações importantes e até morrem.

Claro, o coronavírus causador da covid-19 chamou a atenção porque fez isso aos montes, do jeito como se alastrou e tomou conta do mundo. Mas saiba que está longe de ser o único culpado por trás da ameaça.

O que faz o coração inflamar

Uma variedade de agentes infecciosos — incluindo bactérias, protozoários e fungos — é capaz de deixar o coração nessa situação delicada. Sem contar reações de toxicidade provocadas por medicamentos, metais pesados, radiação... Às vezes, nem há fator externo — são as defesas que se voltam contra o peito em uma reação autoimune.

No entanto, de longe os principais responsáveis por inflamações no músculo cardíaco são, de fato, os vírus. Você ficaria espantado com a lista extensa dos potenciais causadores dessa encrenca.

Além do Sars-CoV-2, estão o influenza da gripe, o vírus do sarampo, o da caxumba, o do herpes, o HIV e vários outros, com destaque para alguns que nós, brasileiros, conhecemos mais do que muitos cantos do globo, como o da dengue, o da febre amarela e o da Chikungunya. Perdão, mas, se organismo dá mole, todos querem ganhar o seu coração.

A charada dos sintomas

Ainda assim, as miocardites são uma condição relativamente rara que parece acontecer um pouco mais em homens do que em mulheres. Só é difícil dizer quantas pessoas têm o problema a cada ano, já que uma boa parcela dos casos é assintomática.

Nem naqueles que têm sintomas, aliás, a identificação de que o coração está inflamado se torna tão fácil. Até porque, para confundir, a miocardite pode se manifestar de formas ligeiramente diferentes conforme a criatura que, em geral, é jovem — o que não exclui a possibilidade de a inflamação surgir em qualquer idade.

Tem gente, então, que fica com febre, com o corpo quebrado e até com enjoo e dor de barriga, quem diria. "A miocardite é mesmo um camaleão", compara o cardiologista Evandro Tinoco Mesquita, professor da Universidade Federal Fluminense, em Niterói, no Rio de Janeiro. "Alguns sentem só palpitação, quem sabe falta de ar. Há quem experimente uma dorzinha no peito e, em outros, ela é tão forte que chega a simular um infarto."

Diante disso, a ajuda do paciente é fundamental: "Quem sente, vamos imaginar, uma dor torácica deve pensar se não teve uma virose ou uma infeccão bacteriana um pouco antes e, se teve, deve contar isso ao médico. Não é mero detalhe. A mesma coisa se viajou para regiões endêmicas de doenças tropicais, se começou a tomar alguma medicação diferente ou, ainda, se é portador de um problema autoimune", dá a dica.

A nova diretriz

O médico, além de vice-presidente da SIAC (Sociedade Interamericana de Cardiologia), é diretor-científico do Grupo de Estudos em Miocardiopatias da SBC (Sociedade Brasileira de Cardiologia), que lançou na quinta-feira passada, 7, sua nova Diretriz de Miocardites.

"Seguramente é a mais moderna do mundo. Entre outros motivos, porque aprendemos com a covid-19 e não apareceu nenhuma outra reunindo esse conhecimento da pandemia para cá", exalta o cardiologista, que é um de seus autores, ao lado de mais de vinte colegas, dois deles especialistas de instituições do exterior, convidados a participar.

A diretriz anterior era de 2013 e, acredite, um bocado de coisas mudou nesses quase dez anos. "Hoje contamos com novos exames para ajudar a detectar essa inflamação, o que é importante a gente flagrar casos assintomáticos de jovens atletas que tiveram uma infecção qualquer e que, depois, passaram mal treinando para uma maratona", exemplifica.

O documento também é o único a incluir as miocardites provocadas doenças tropicais e dedica um espaço a novos tratamentos contra o câncer, em especial a imunoterapia. Ela é eficaz contra certos tumores malignos, mas aumenta o risco de o coração inflamar.

Quando a inflamação vira problema

Tudo começa com a infiltração de células de defesa no miocárdio que, como todo bom músculo, tem a capacidade de se contrair. No caso, toda contração é vital, bombeando sangue com oxigênio para cada pedacinho do corpo.

Acontece que as células imunológicas, buscando resolver um problema — como uma infecção —, disparam a inflamação e ela é capaz de deixar as fibras musculares arrasadas.

"O coração, nocauteado desse jeito, contrai menos", descreve o professor Mesquita. Essa perda de força atrapalha o bombeamento do sangue oxigenado, por isso a fadiga de que alguns reclamam. Já a respiração acelera e fica mais curta, na tentativa frustrada de compensar tudo. Falta fôlego. E, como tudo o que inflama incha, a impressão pode ser a de aperto no peito ou de dor. Lembrando: alguns indivíduos não percebem nada disso.

"A maioria fica completamente curada, mas de 15% a 20% acabam desenvolvendo uma disfunção", explica o cardiologista. Ou seja, ficam para sempre com uma insuficiência cardíaca, quando o miocárdio não recupera a força para bombear adequadamente o sangue. Em 10% desses casos mais graves, o coração fica tão grande e flácido que não há outro jeito a não ser transplantar.

Outra consequência possível é a arritmia, quando os batimentos vez ou outra perdem o ritmo. Em casos extremos, isso provoca uma parada cardíaca.

O caminho do diagnóstico

"O exame padrão-ouro para confirmar a miocardite ainda é a biópsia", conta Evandro Tinoco Mesquita. Mas ela acaba sendo realizada em uma minoria dos casos. Ora, ninguém sai tirando uma amostra do miocárdio sem uma suspeita muito forte.

Mais do que bater o martelo na miocardite, a biópsia traz uma informação preciosa: o tipo de célula imunológica que está ali, infiltrada no músculo para agredi-lo.

"Se é um eosinófilo, sei que há uma hipersensbilidade do próprio miocárdio e, para acabar com o processo, terei de tratar com corticoides", conta o professor para ilustrar.

Determinados linfócitos, por sua vez, apontariam para uma infecção por vírus , sendo que há exames complementares para acusar qual deles está ali. "Então, pode ser o caso de o médico usar um antiviral."

Um dos grandes papéis de uma diretriz é justamente orientar quem está no consultório a percorrer todo o caminho certo até descobrir o que o paciente tem para, então, lançar mão do que existe com maior evidência científica. Serve como uma "receita de bolo".

No caso, primeiro, além de esmiuçar a história de cada um — "até ver se a carteira de vacinação está completa é importante", diz Mesquita — e fazer o eletrocardiograma, o cardiologista deve pedir exames de sangue.

"É que existem moléculas liberadas na circulação quando o músculo cardíaco está sendo lesionado, como as de troponina", diz o professor. Elas são marcadores, isto é, pistas que sugerem o sofrimento do peito.

Os cardiologistas também devem fazer o ecocardiograma para entender como está o bombeamento do sangue e uma ressonância do coração, capaz de acusar o inchaço típico de uma inflamação. "É isso o que pode estar por trás da dor", explica.

Se, no final da bateria, a suspeita for de fato forte e o quadro, preocupante, como quando há sintomas que já duram acima de quatro semanas, talvez sejam necessários mais exames — com destaque para a biópsia.

Acompanhamento de um ano

Este é um ponto importante, na opinião do professor Mesquita: uma miocardite não deve cair depressa no esquecimento. "Esse coração precisa ser acompanhado por um ano, para ver se não surge uma arritmia, por exemplo", aponta.

Fundamental: não é para fazer qualquer atividade física, especialmente no primeiro mês após a recuperação. "Questão de prudência", afirma o médico.

O coração com a covid-19

Sim, a vacina contra o Sars-CoV-2 pode causar miocardite. Qual a novidade? Sempre pode acontecer após vacinas contra um vírus, mas os episódios extremamente escassos se perdem entre milhões de pessoas imunizadas.

No caso da covid-19, o risco de alguém ter miocardite pela própria doença é 60 vezes maior. A discrepância entre infecção e imunização é gritante em outro aspecto: "A miocardite vem surgindo na covid-longa, principalmente em quem teve quadros severos da infecção pelo coronavírus" observa o professor Mesquita. Casos severos que, diga-se, a vacina previne.

"Já a miocardite pós-vacinal, além de muito leve e raríssima, costuma passar sem a gente fazer nada", garante o cardiologista. Porém, a ordem de evitar exercício para não forçar e mudar esse jogo continua valendo.

Bom lembrar que os poucos casos registrados pós-vacina de covid-19 se concentram em rapazes adolescentes e homens jovens — e não em crianças, que correm muito mais risco de serem fulminadas por uma miocardite do que gente grande quando contraem uma infecção qualquer. Aliás, mais um motivo para colocar a carteira de vacinação delas, todinha, em dia.