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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Estudo inédito brasileiro: será que é possível prevenir o diabetes tipo 1?

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

07/07/2022 04h00

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O diabetes tipo 1, uma vez que se instala, não tem cura. E não pode ser evitado. Veja bem, até que se prove o contrário.

Ora, diferentemente do tipo 2 da doença, o tipo 1 não tem a ver com nossos hábitos, se estamos acima do peso ou sedentários, se levamos anos dando canseira no pâncreas nos empanturrando de doces e outros alimentos calóricos — algo que sempre podemos mudar, tomando um pouco de juízo.

Sua causa é um ataque do sistema imunológico que, simplesmente do nada, muitas vezes sem ter qualquer caso semelhante na família, surpreende todo mundo ao se voltar contra as unidades pancreáticas responsáveis pela produção de insulina.

O hormônio seria o encarregado de botar a glicose que estava no sangue para dentro das células. Sem ele, esse açúcar fica dando sopa na circulação, o que tem efeitos nefastos para a saúde.

O golpe da autoimunidade pode ser rápido. Em crianças e adolescentes — faixa etária em que essa forma da doença aparece na maioria das vezes — talvez leve somente algumas semanas até a completa destruição das células beta que liberariam a insulina. Em jovens adultos, nos quais o surgimento desse tipo de diabetes é mais raro, talvez demore um tiquinho mais.

Seja como for, a pergunta que médicos brasileiros ousam fazer é a seguinte: mas será que não tem jeito mesmo de adiar ao máximo esse momento ou, sonhando mais alto, até mesmo impedir que aconteça, evitando o diabetes tipo 1?

Para isso, estão dando o pontapé inicial do estudo "Pre 1 Brazil" na próxima quinta-feira, 14, na abertura do EndoDEBATE 2022, evento que reunirá mais de 3 mil especialistas em diabetes.

Ali, a primeiríssima apresentação será a do endocrinologista Renan Montenegro Junior, pesquisador e professor da Faculdade de Medicina e do Complexo Hospitalar da UFC (Universidade Federal do Ceará) / EBSERH.

Ao lado de outra pesquisadora da UFC, a endocrinologista Jaquellyne Penaforte, ele vai explicar por que essa investigação foca em uma molécula, a alogliptina, que é velha conhecida na sua área. Lançada no país em 2006, ela é bastante usada para tratar o diabetes tipo 2.

A alogliptina é um inibidor da DPP4, molécula liberada pelo fígado que, nesse contexto, boa coisa não faz. "Ela é sempre lembrada como um remédio seguro e com raríssimos efeitos colaterais para baixar a glicose no sangue", conta o professor Montenegro.

A questão é que até mesmo os endocrinologistas ignoram ou, vá lá, se esquecem que a tal alogliptina mexe com o sistema imunológico — eis o pulo do gato. E mexe de um jeito que pode aplacar sua fúria contra o pâncreas. É essa capacidade que, agora, será colocada à prova.

Os estágios do diabetes tipo 1

Embora a maioria dos pacientes descubra o diabetes tipo 1 quando a glicemia já está estourando nas alturas e o pâncreas, arrasado, existem pistas de quando essa encrenca está prestes a acontecer. Uma delas é a presença de anticorpos que mirariam as células beta.

O endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador da USP (Universidade de São Paulo) de Ribeirão Preto, conta que, no seu consultório, é comum a mãe chegar com o menino com diabetes tipo 1 e outra criança no colo. "Os pais, então, invariavelmente perguntam se o irmão menor também poderá ficar com a doença", diz ele, que é outro líder do "Pre 1 Brazil", além de ser o criador do EndoDEBATE.

A possibilidade existe, o médico sabe. Por mais que o diabetes tipo 1 possa aparecer em famílias que nunca viram nada parecido, pode acontecer, sim, de irmãos de quem apresenta a doença serem diagnosticados com ela também. Entre parentes de primeiro grau, o risco é de fato maior do que na população geral.

"Para dar alguma resposta, só dosando os tais anticorpos", conta Couri. "O resultado positivo, porém, não dá a certeza absoluta de que a pessoa se tornará diabética. Ela, de novo, apenas possui um risco maior."

Ter anticorpos, mas continuar com a glicemia absolutamente normal, enquadra o indivíduo no estágio 1 desse diabetes. E muita gente passa a vida inteira nele, sem nunca ter nada.

Já quem, além de ter anticorpos, apresenta um nível alterado de glicose no sangue está no estágio 2. "Em uma licença poética, seria feito um pré-diabetes", diz Couri. "Porque, aí, a probabilidade de o sujeito se tornar diabético tipo 1 é grande, gira em torno de 70%." Justamente por isso, os pesquisadores estão buscando para o estudo pessoas nesse segundo estágio, que tenham entre 18 e 35 anos.

No estágio 3, não precisa de muito tempo para as células beta já terem ido para o brejo. Daí que não adiantaria tanto se o inibidor de DPP4 evitasse ataques ao pâncreas — o estrago estaria feito. "No estágio anterior, porém, se conseguirmos interrompê-los, ainda haverá uma boa reserva das células produtoras de insulina", explica o professor Montenegro.

Por que um inibidor da tal DPP4?

No organismo, a DPP4 liberada pelo fígado acaba com a graça de outra molécula, esta secretada pelo intestino — a GLP1, que ajuda a controlar a glicemia e, de quebra, gera a saciedade, promovendo a perda de peso. Tanto que os novíssimos remédios para obesidade e diabetes fazem as vezes da GLP1 no corpo. Só que lamentavelmente a molécula produzida no organismo não dura mais do que poucos minutos diante de sua inimiga DPP4 — eis uma boa razão para uma barrá-la.

Os endocrinologistas têm na ponta da língua essa parte da parte da história. "O que muitos desconhecem é que, no plasma sanguíneo, a DPP4 se ancora na membrana de um linfócito, a CD-26", diz Couri. Quando isso acontece, a DPP4 atiça essa célula de defesa a comprar briga com o pâncreas. Inibi-la, então, seria como apaziguar a situação, coisa que um comprimido diário pode fazer.

A modulação que a substância faz do sistema imunológico é branda — o suficiente para poupar o pâncreas, mas sem afetar a capacidade de nossas defesas reagirem diante de uma infecção. Tanto que, vale repetir, é usada há muito tempo no diabetes tipo 2.

A origem da sacada

Nos primeiros anos 2000, Couri e seus colegas da USP de Ribeirão passaram a estudar o transplante de células-tronco para reverter o diabetes tipo 1 em pacientes que já estavam na fase 3, mas com seis semanas de diagnóstico no máximo. Ou seja, quando mal tinham descoberto a doença e ainda lhes restavam células beta intactas.

O procedimento se mostrou um sucesso: com uma quimioterapia pesada, os pesquisadores destruíam a medula onde as células de defesa eram produzidas. Depois, com a ajuda de células-tronco, fizeram com que o sistema imune fosse reiniciado feito um computador — só que não mais programado para cismar com o pâncreas.

"No entanto, entre 2008 e 2009, alguns pacientes tratados assim, que tinham ficado livres da necessidade de aplicar insulina há mais de quatro anos, voltaram a precisar das injeções do hormônio", conta o médico.

Foi daí que, dando continuidade ao estudo, ele apelou para um jeito mais suave de colocar as defesas no prumo, sem arriscar repetir a quimioterapia. "Usei a alogliptina. E o que aconteceu? Boa parte parou de usar insulina de novo."

Qual é o desafio?

A maior dificuldade do "Pre 1 Brazil" será encontrar pessoas naquele estágio 2, que são feito agulhas em palheiros. Ora, o próprio diabetes tipo 1 não soma mais do que 92 mil pacientes no Brasil. Como ir atrás, por exemplo, de seus parentes próximos?

A saída encontrada é usar um sistema que já faz sucesso lá fora: a possibilidade de médicos de todo o país cadastrarem pacientes nessa condição, formando uma rede e assinando junto. Ao entrarem no site da pesquisa, os endocrinologistas terão a lista de exames que deverão solicitar nos casos suspeitos, aqueles de pessoas com anticorpos contra o pâncreas e glicemia já ligeiramente acima do normal.

"Quando alguém se encaixa no critério, é gerado um termo de consentimento e o sistema sorteia para qual grupo ele irá, se para o que tomará o remédio ou se para a turma que ficará sem ele", conta Couri. A expectativa é de que o inibidor da DPP4 no mínimo atrase a virada do estágio 2 para o 3, que é o diabetes pra valer.

Pergunto ao professor Montenegro se a vantagem seria adiar as várias e não tão agradáveis injeções de insulina. "Vai além disso", responde. "Quanto mais tempo a pessoa convive com a glicemia alta, maior o risco de complicações. Portanto, jogar o início da doença mais para frente é evitar que os problemas decorrentes dela apareçam."

Espera-se ainda que o medicamento poupe algumas células do pâncreas, mesmo em quem acabe desenvolvendo o diabetes. "Essa reserva já evitará muitas oscilações da glicemia ao longo do dia", diz o médico.

Um detalhe: o inibidor da DPP4 ainda não é aprovado para crianças e adolescentes, até porque era usado no diabetes tipo 2 que, em geral, surge em gente mais velha. Como ficará então, já que o diagnóstico do tipo 1 é frequente em idades precoces? "Se os nossos resultados forem positivos, será questão de tempo para o remédio ser estudado nos jovens", aposta Renan Montenegro. E tanto ele quanto os seus colegas estão bem confiantes nisso.