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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Dentro do coração: ultrassom agora quebra placas que enrijeciam artérias

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Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

21/06/2022 04h00

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Quando uma placa está no caminho do sangue para lhe atrapalhar a passagem, a gente costuma dizer que ela é de gordura, quase que para simplificar a vida.

Mas, cá entre nós, a placa é feita de um bocado de coisas. De gordura, sim, sem dúvida. Mas também, por exemplo, de fibras e cálcio. Ah, sim, ela pode ter bastante desse mineral, que se acumula ali ao longo dos anos, morosamente, sem um pingo de pressa.

"Por causa dessa demora e como as pessoas estão vivendo mais, encontramos com uma frequência cada vez maior a doença calcificada das coronárias no dia a dia", observa o cardiologista Pedro Lemos, referindo-se à rede de artérias que irrigam o coração. E como ele depende delas!

"O coração é um músculo que, se você pudesse tirar um pedacinho e olhar pelo microscópio, veria que é muito parecido com o da coxa", compara o médico, que é coordenador do Centro de Intervenção Cardiovascular do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, e dono de uma rara capacidade de falar de Medicina como quem conta um bom causo.

Onde termina a semelhança: o músculo cardíaco bate umas 80 vezes por minuto. "Já se eu pedir para qualquer pessoa erguer a coxa 80 vezes nesse mesmo minuto, ela não aguentaria por muito tempo", diz ele.

Claro que, para ser esse atleta guardado em nosso peito, o coração requer incessantemente uma energia danada, exigindo um belo suprimento de oxigênio a cada instante. Esse serviço de abastecimento é feito justamente pelas coronárias. Daí que não tarda mais do que segundos para ele se ressentir, se elas ficam obstruídas pelas tais placas.

"Se junta um coágulo a uma delas, essa obstrução é abrupta. Temos um infarto", conta o cardiologista. "Agora, se acontece vagarosamente, tornando o caminho do sangue mais e mais estreito por causa da placa crescida, a pessoa sente a dor da angina."

De um jeito ou de outro, nessas horas é preciso fazer alguma coisa — ou o coração não vai tolerar o sufoco. É quando, com balões e stents, Pedro Lemos e seus colegas entram em cena navegando por dentro dos vasos até a área problemática, realizando a famosa angioplastia. Só que ninguém pensa duas vezes na encrenca que aquela calcificação pode significar nesse dia.

"Ora, a gordura é toda molinha, esponjosa", descreve o cardiologista. "Mas o cálcio é o ingrediente que encontramos nos ossos e nos dentes".

Fácil deduzir onde essa história vai dar: quando o mineral se acumula nas paredes dos vasos, eles vão se tornando cada vez mais enrijecidos. "E tudo bem se estão rígidos, isto é, desde que passe sangue em um volume razoável por ali", comenta Pedro Lemos. "O problema é quando isso deixa de acontecer."

Até a semana passada, para o médico, casos assim eram sinônimo de enrascada. "Para desobstruir a coronária, eu preciso dilatá-la, isso é certeza", fala, dando o princípio básico. "Mas como eu posso dilatar um vaso que está duro? O stent não faz isso. Ele é apenas um suporte que mantém aberta a coronária que acabei de dilatar. Por isso, repito, o que daria para eu fazer se essa artéria não fosse dilatável?".

Existiam, sim, alternativas. Mas a resposta ideal para essa pergunta só veio na semana passada, quando Pedro Lemos e seus colegas do Einstein (na foto), em um procedimento inédito no país, usaram ultrassom e, com ele, simplesmente quebraram todo aquele cálcio na coronária que estava dura feito pedra.

Como era antes

Além de não ser possível dilatar direito a área obstruída para reestabelecer o fluxo sanguíneo, levando um balão com a ajuda de um cateter para inflá-lo bem nesse ponto, os médicos tinham o seguinte desafio: chegar até essa área propriamente dita, se por azar encontravam diversos outros trechos calcificados pelo caminho.

"A sensação era de andar em patins em uma rua de paralelepípedos", lembra Pedro Lemos. De fato, um vaso sanguíneo sem tantas placas podia parecer uma via pavimentada, na qual o cardiologista era capaz de navegar com o cateter na maior suavidade. No entanto, as calcificações criam reentrâncias que, muitas vezes, atrapalham o dispositivo a seguir em frente.

"Podia acontecer de nem conseguir alcançar a lesão", revela o médico. Portanto, ele tinha que se virar com artérias pouco navegáveis e muito pouco dilatáveis. Aliás, para completar: por mais que peçam exames antes do procedimento, cardiologistas só sentem pra valer a rigidez das coronárias do paciente ao tocá-las, na hora agá.

"Se estão muito rígidas, nem sempre é caso de parar no meio aquilo que estava sendo feito. Mas, se continuamos, o resultado da desobstrução nunca fica tão bom", observa o médico.

Alternativas que não eram perfeitas

Existem balões de alta pressão que, digamos, dilatam a coronária calcificada na marra. "Para você ter ideia, a pressão sanguínea normal, que é de 120 por 80 mmHg, ou milímetros de mercúrio, equivaleria a 1/6 ou a 1/5 de 1 atmosfera, que é outra unidade de medida de pressão", ensina Pedro Lemos. "E temos balões que atingem 24, 25 atmosferas. Nem no fundo do mar há essa pressão." Será que paredes feito concreto das coronárias calcificadas suportariam tanto? Nem sempre. Há um risco.

Os cardiologistas intervencionistas também podem lançar mão de lâminas microscópicas, fazendo talhos igualmente minúsculos nas placas cheias de cálcio. Para você visualizar o efeito disso: "É como uma melancia na qual basta eu dar um pico certeiro com a faca para ela se abrir."

Finalmente, outra estratégia é a ablação, que funciona como se os cardiologistas intervencionistas lixassem, por assim dizer, a placa endurecida. "Ela é extremamente segura e usada há muitos anos", conta o médico. "Mas o equipamento precisa encostar nas placas e, naturalmente, só pode fazer isso na superfície interna da coronária, enquanto algumas calcificações, talvez a maioria, são profundas porque se infiltram na parede da artéria."

Resultado: a pessoa até melhora, mas não podemos dizer saia com as coronárias totalmente desobstruídas. Continua com algum grau do problema que a fez parar no hospital. "Mas era o arsenal que tínhamos até então", diz Pedro Lemos.

O ultrassom dentro do peito

A nova tecnologia que aterrissa no Einstein na mesma semana que no Japão — sendo realizada há quatro anos na Europa e há um, nos Estados Unidos —resolve boa parte de todas essas limitações.

Os médicos a chamam de litotripsia, nome que já diz muito porque quer dizer algo como "quebrar cálculos". Os urologistas já o pronunciam faz tempo. Não é de hoje que usam essa onda de som de altíssima energia, com uma frequência acima daquelas que a gente consegue escutar, para fazer com que as pedras nos rins vibrem até se arrebentarem. "É como quando um som muito alto estilhaça um copo de cristal", faz outra comparação Pedro Lemos.

No caso, porém, os cálculos renais viram areia e cumprem o seu destino de serem eliminados pela urina. "Já o cálcio da coronária não vai para lugar algum", esclarece o cardiologista. "Apenas, aquela placa grandalhona se quebra em mil pecinhas, ficando feito um mosaico, e a parede do vaso se torna flexível." Aí, com tranquilidade, o balão da angioplastia pode fazer o seu trabalho.

As vantagens da novidade

Mal chegou e o ultrassom já entrou na rotina do hospital paulistano. Isso porque apresenta, de acordo com os vários testes clínicos realizados, uma combinação rara em dispositivos recém-lançados.

"É comum um novo procedimento em Medicina ser mais eficiente do que o que existia anteriormente, mas pagando um preço: o de ser mais invasivo ou menos seguro", nota o doutor Pedro Lemos.

Também pode acontecer o contrário: um novo tratamento trazer mais segurança, mas não ter um resultado tão bom quanto o obtido antes. "Mas, no caso da litotripsia das coronárias, ela dá as condições para a desobstrução ficar excelente e, ao mesmo tempo, é muito mais segura para o paciente", garante o cardiologista.

Segundo ele, uma angioplastia leva cerca de uma hora e meia quando não há placas tão calcificadas. No entanto, a duração do procedimento é imprevisível quando as calcificações estão muito presentes. "Às vezes, navegando com o cateter pelos vasos, a gente leva um tempão só para ultrapassar um trecho mínimo no percurso", conta o médico.

Para você ter ideia, com o ultrassom deixando as placas em pedacinhos — inclusive pelo caminho até a lesão, quando necessário —, o procedimento volta a ter uma hora em meia. Rapidamente, as coronárias perdem a rigidez e a angioplastia segue como sempre. Um dia depois, a pessoa já costuma estar em casa, com as artérias desimpedidas. E, arrisco, bem mais flexíveis, dando todo o suporte àquelas 80 batidas por minuto que nos enchem de vida.