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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Fígado: estudo testa técnica que aumenta a chance de sucesso do transplante

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

10/05/2022 04h00

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O fígado é um sofredor. Às vezes, apanha tanto que se torna quase imprestável, precisando ser substituído assim que possível. Afinal, não dá para viver mais do que poucas horas sem contar com o trabalho desse órgão, um faz-tudo no corpo humano.

Em condições normais, sem titubear, ele é capaz de quebrar moléculas para que sejam usadas ou jogadas fora, armazenar substâncias importantes, fabricar proteínas, mandar energia para todo o organismo, destruir micróbios absorvidos com a comida caso tenham driblado as defesas do intestino, eliminar glóbulos sanguíneos envelhecidos e muito mais.

Mas o Brasil, no caso, é o segundo país em número absoluto de transplante hepático do planeta, só perdendo para os Estados Unidos. Em 2019 — últimos dados que temos em mãos —, dos 23.957 transplantes realizados no país, 2.245 foram de fígado.

Um aumento e tanto, já que aconteceram apenas 1.603 dessas cirurgias dez anos antes. Assim como cresceu o número de equipes capazes de realizar o procedimento e, sim, aumentou um bocado a quantidade de doadores também.

Ainda assim, naquele 2019 seriam necessárias 2.967 cirurgias para zerar a fila. Sinal de que 722 pessoas ficaram na espera. Alguns permanecem nela por até quatro anos. Outros não suportam. E essa situação de demanda reprimida tende até a se agravar, porque já não se acha por aí um fígado doado como antigamente.

Com uma população que envelhece e que tem cada vez mais obesidade e outras doenças, o órgão doado muitas vezes já chega lesado, com vasos danificados e acúmulo de gordura. Se não fosse isso, aqueles mais de 700 pacientes não teriam ficado na mão. Ora, havia mais doador falecido do que gente precisando de transplante. Mas quatro em cada dez fígados simplesmente não estavam em boas condições para serem transplantados.

É, aliás, esse o problema que um estudo liderado pelo cirurgião de transplante hepático Yuri Longatto Boteon, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, pretende minimizar ao testar no país uma técnica conhecida por HOPE, sigla para "hypothermic oxygenated machine perfusion" ou máquina de perfusão hipotérmica oxigenada.

O que esperar desse tipo técnica

Conversei ontem com o cirurgião diretamente de Istambul, na Turquia, onde aconteceu o congresso da ILTS (sigla do inglês para Sociedade Internacional de Transplante de Fígado).

"O uso de máquinas de perfusão tinha sido cogitado nos primeiros transplantes há quase cinquenta anos, mas a caixa de gelo para levar o órgão doado era mais simples e funcionava bem. Daí que só agora isso voltou a ser o assunto da vez", me disse ele. Pudera: a dificuldade para encontrar um doador em plenas condições se tornou comum.

Alternativas como a técnica HOPE testada no Einstein aumentam o tempo em que o órgão se mantém apto a ser transplantado, o que é bastante animador no nosso caso, quando podem existir enormes distâncias entre o doador que está no norte do país e o receptor que está no sul. Mas não é só isso.

A tal máquina de perfusão melhora à beça as condições de um fígado que não está uma perfeita maravilha. "Esse recondicionamento diminui o risco de, após a cirurgia, ele frustrar as expectativas e não funcionar", explica Boteon.

Tem mais: a técnica ameniza a ameaça de o coração ter um piripaque durante o transplante. Sim, esse vizinho de cima do fígado, separado apenas por um músculo, o diafragma, pode dar problema na hora agá. A HOPE também encolhe a probabilidade de os rins se ressentirem e de haver rejeição do órgão doado.

No Einstein, já foram realizados quatro dos doze transplantes programados ao longo do estudo. O primeiro deles, em fevereiro, foi em um rapaz de 22 anos em estado crítico, que podia sucumbir em dias. Ele, agora, passa bem.

Por que o fígado sofre tanto

O Brasil não é vice-campeão em transplantes hepáticos por ter alguma condição pior para a saúde do fígado. "Isso tem mais a ver com o tamanho da nossa população e com o fato de que, por aqui, a cirurgia pode ser feita na rede pública", explica Yuri Boteon.

Em relação aos fatores de risco, eles são mais ou menos os mesmos em qualquer canto do globo, sendo que o maior deles se encontra em franca ascensão.

Aliás, esqueça o estigma de que o candidato ao transplante hepático é sempre aquele indivíduo mais velho que consumiu muito álcool. "O excesso de bebida é até uma das causas, mas está longe de ser a única", garante Boteon.

Segundo ele, no Brasil as hepatites virais lideravam os motivos por trás da necessidade de o fígado ser transplantado. Hoje, porém, tanto aqui como na maior parte do mundo, no topo da lista está esteatohepatite não alcoólica, o estágio mais avançado da esteatose, o acúmulo de gordura no fígado, provocado por um sedentarismo e uma obesidade cada vez mais prevalentes. Ela deflagra uma inflamação que pode causar danos irreversíveis. Às vezes tão grandes que o final da história é mesmo um transplante.

Outras razões que levam um sujeito à fila de espera para essa cirurgia são o câncer hepático e algumas doenças autoimunes, como a do jovem que foi o primeiro a participar do estudo brasileiro.

Um fígado em condições para ser doado

Até os anos 1990, a maior parte dos fígados transplantados vinha de jovens que, infelizmente, tiveram morte encefálica. Agora, aumenta a oferta de doadores mais velhos que não estão 100% e que se encaixam naquilo que os médicos chamam de critérios estendidos.

Aí uma série de detalhes contam, desde eventuais doenças que esses indivíduos já tinham ao tempo que passaram em uma UTI. "Se, ali no leito, o organismo acumulou sódio, as células hepáticas podem ter inchado a ponto de ficarem lesionadas", exemplifica o médico.

Ele compara: "Se tenho um doador de 80 anos que não tinha obesidade e que permaneceu apenas um dia na unidade intensiva, o seu fígado provavelmente terá melhores condições do que o de alguém com a mesma idade que estava com uma infecção grave e há duas semanas internado".

Por critérios assim, quando a equipe de transplante percebe uma mínima possibilidade de o fígado não funcionar no pós-operatório, ela declina da ideia de seguir adiante.

Também existe a corrida contra o tempo. "O fígado de um jovem saudável é capaz de aguardar cerca de doze horas até voltar a ser oxigenado pelo sangue, ao ser implantado no receptor", conta o cirurgião."No entanto, se é um fígado dentro daqueles critérios estendidos, o tempo de espera diminui para seis horas." Isso pode impedir uma doação do Amazonas de servir para alguém que estava na fila do transplante em São Paulo.

Quais são os problemas

A questão é que, quando o fígado é retirado do doador, ele naturalmente para de receber sangue oxigenado. Esse estado de isquemia faz com que suas células procurem uma via alternativa ao oxigênio para obter energia e sobreviver. Só que o preço disso é uma produção brutal de radicais livres.

O detalhe é que um fígado em condições não tão ideais faz isso com intensidade bem maior, derrubando a chance de sucesso da empreitada.

"Ora, os radicais danificam as paredes celulares e, conforme a quantidade de tecido lesado, no final das contas eu não vou poder mais transplantar aquele órgão", justifica Boteon.

Eles disparam ainda uma inflamação, com uma enxurrada de moléculas chamadas citocinas, experts em dilatar os vasos. Quando o fígado é conectado ao paciente, o acúmulo delas se derrama na circulação sanguínea e sua primeira escala costuma ser no coração, que está logo acima. "O anestesista, então, fica esperto porque o risco de uma arritmia é alto", conta o cirurgião.

Não bastasse, esse excesso de moléculas inflamatórias é filtrado pelos rins, o que pode gerar problemas em pacientes mais frágeis. Para complicar de vez, as células hepáticas danificadas nesse período crítico podem servir de alvo ao sistema imunológico, culminando em uma rejeição.

O que a máquina em teste faz

A clássica caixa de gelo para transportar o órgão doado, ao diminuir a temperatura, leva o metabolismo das células a despencar. Com isso, elas gastam menos energia, dependem menos daquela via alternativa, consequentemente geram menos radicais e menos inflamação também.

Mas a prática mostra que toda essa redução não é suficiente se doador tem o tal perfil de critério estendido. "Atualmente, é o caso de 60% a 70% dos fígados usados em transplante", estima o cirurgião.

Com a HOPE, porém, logo que o órgão é retirado, a temperatura é mantida entre 8 a 12 graus Celsius, enquanto por meio de diversas cânulas é injetado um líquido com oxigênio em abundância. "Só isso já faz uma lavagem de parte das moléculas inflamatórias", aponta Boteon. E, além do frio baixar o metabolismo como a velha caixa de gelo, a fartura de oxigênio minimiza aquele efeito em cascata.

A técnica, que no Brasil só está sendo usada em pesquisa, já é aplicada com sucesso em outros países, estendendo o tempo máximo de transporte para oito horas.

O que o estudo do Einstein pretende ver agora é se existiriam marcadores, isto é, moléculas no fígado ou no líquido usado na HOPE, capazes de informar se tudo funcionará bem depois, criando um critério mais objetivo para usar ou descartar o órgão doado. Uma garantia a mais aos pacientes que esperam há tanto tempo por ele.