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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Inédito no Brasil: câncer é destruído em um minuto e só com anestesia local

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

24/03/2022 04h00

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A história de um indivíduo pode abrir novas possibilidades para a história de muitos. Por isso, acredite: vale prestar atenção no que aconteceu no último final de semana em São Paulo com um senhor de 68 anos que passou por um procedimento minimamente invasivo para se livrar de um câncer no pulmão em pouco mais de um minuto cronometrado.

E detalhe inédito no país: o procedimento no pulmão foi feito com anestesia local. Aliás, este não é qualquer detalhe, porque é o que pode dar esperança para outras pessoas, com outros tumores, mas que também não teriam condições de enfrentar uma cirurgia para tratar a doença —seja por causa de uma idade muito avançada, seja por terem algum problema de saúde servindo de obstáculo no caminho que as levaria com segurança ao centro cirúrgico.

O paciente, no caso, já tinha enfrentado bravamente um tumor de intestino e os exames mostravam que o abdômen estava com a imagem limpinha, livre do câncer.

Há um tempo, ele também já tinha quase sido levado por um infarto e, no entanto, sobreviveu a esse susto. Ou seja, as coisas iam relativamente bem até que encontraram um nódulo estranho em seu pulmão. Pois é, o câncer, varrido de outros cantos do corpo, só não tinha tomado um chá de sumiço bem ali. E foi então que tudo pareceu ficar complicado como nunca.

Cá entre nós, um tumor pequeno como aquele —tinha apenas 0,8 centímetro de diâmetro— poderia muito bem ser retirado com o bisturi. O problema era o coração que, depois de infartar, nunca mais teve a força de antes para bombear o sangue.

Essa insuficiência cardíaca levou a equipe médica a fazer o alerta: se aquele homem recebesse uma anestesia geral, o risco seria tremendamente alto. A ideia de operar, então, foi descartada.

Restava a alternativa da quimioterapia: "A questão é que, nesse caso, ela não seria curativa. Apenas controlaria o tumor por um tempo", conta o radiologista intervencionista Luiz Tenório Siqueira do Hospital Vila Nova Star, na capital paulista.

Foi nessa hora que resolveram procurá-lo para saber se conseguiria dar um jeito, fazendo o que os médicos chamam de ablação —mas, digamos, desafiando o doutor a realizá-la de um jeito diferente.

Micro-ondas para acabar com um tumor

Não é nova a ideia de matar um câncer de frio ou de calor, por assim dizer. A ablação tumoral térmica já é realizada há uns 20 anos no país.

Quando os médicos congelam as células malignas até arrasá-las, eles falam em crioblação. Já quando optam pelo calor, o método mais conhecido ainda é aquele por radiofrequência.

A ablação por radiofrequência chegou por aqui no ano de 2002. Nela, os especialistas colocam duas placas de eletrodos nas pernas do paciente, emitindo uma corrente elétrica.

"A dificuldade é que essa corrente produz a sensação de choque no corpo e a gente precisa esperar cerca de 12 minutos até ela aquecer as células malignas a ponto de serem destruídas", explica o doutor Tenório. "Ora, ninguém aguentaria 12 minutos levando choque só com anestesia local."

Há três anos, porém, os médicos começaram a lançar mão do mesmo princípio —aquecer o tumor— usando micro-ondas no lugar dos choques da radiofrequência para tratar cânceres no fígado, nos rins, na mama e, claro, nos pulmões.

Luiz Tenório simplifica o entendimento: "Todo mundo nota, com o forno de micro-ondas de casa, que essa é uma radiação que esquenta muito depressa. Você coloca uma xícara com água no eletrodoméstico e, em 30 segundos, o líquido está aquecido."

São justamente as moléculas de água das células o alvo no tratamento: as micro-ondas são capazes de agitá-las, friccionando-as. E essa espécie de fricção molecular, para quem se lembra das aulas de física, gera um calor danado. No caso, a temperatura sobe a tal ponto que a célula morre em sua própria fervura. Mas isso também vinha sendo feito com os pacientes sedados com anestesia geral.

O radiologista intervencionista do Vila Nova Star, porém, arriscou apresentar uma proposta diferente ao paciente: como o procedimento seria rápido e, na maior parte de sua curtíssima duração, nem daria para sentir o aquecimento, será que ele não toparia fazê-lo só com anestesia local? Ele disse que sim. E marcaram para sábado passado, dia 19.

Como foi o procedimento

"Submeter-se a uma ablação assim não é para qualquer um", reconhece o doutor Tenório. De fato, outro paciente poderia ter um perfil psicológico mais aflito, mas aquele senhor estava confortável com a ideia.

"O esperado seria algo como um chuveiro de água bem quente, quando você até aguenta no início, mas depois de um tempo a pele sente queimar", compara o médico. "Por isso, se começasse a sentir dor, deveria pedir para a gente parar."

Esse aviso foi reforçado ao ser aplicada a anestesia local na pele, preparando-a para ser perfurada por uma agulha longa, semelhante àquelas das biópsias de mama, mas com a antena de micro-ondas na ponta.

Mas antes disso, com outra agulhada, o doutor Tenório alcançou a pleura, o tecido fino que reveste os pulmões, para injetar o anestésico ali também. É que, tremendamente inervada, ela, sim, poderia arder de dor.

Como em toda ablação desse tipo, a agulha capaz de emitir micro-ondas foi introduzida até o interior do tumor pequenino, guiada pelo ultrassom e pela tomografia computadorizada. "Isso nos dá uma precisão incrível", conta o médico, animado.

Ele justifica o entusiasmo: "Às vezes, em uma operação convencional para extirpar um tumor no pulmão, o cirurgião sabe onde ele está e consegue senti-lo. Mas, no caso de um nódulo maligno como esse, quase do tamanho de uma ervilha, nem sempre isso acontece. Então, para achá-lo, é preciso drenar toda a região, tornando o procedimento muito mais complexo."

Além de localizar o alvo com facilidade, o intervencionista tem controle milimétrico sobre a área que está destruindo. Conforme o comprimento das micro-ondas e a duração da emissão, ele é capaz de estimar o tamanho da área que está sendo queimada ao redor da pontinha da agulha.

Para aquele tumor específico, o médico sabia que um único minuto já seria o suficiente. Guiado pelas imagens, quando a agulha chegou no ponto exato onde Luiz Tenório queria, foi acionado o gerador. "Nesse momento, já que o paciente estava acordado, comecei a bater-papo para fazer uma horinha", recorda. Uma horinha, não, doutor! Um minutinho.

Na verdade, Tenório decidiu ir um pouco além. "Em qualquer tratamento, toda vez que queremos tirar um tumor, eliminamos também uma área de tecido aparentemente sadio ao seu redor", explica.

É uma margem de segurança. Afinal, alguma célula maligna pode ter escapado do nódulo e, se ela restar pelas vizinhanças, será a semente de mais uma metástase amanhã ou depois.

O tempo extra, portanto, foi para garantir essa margem. "Quando deu um minuto e dez segundos, o paciente avisou que estava sentindo esquentar e passando a doer. Paramos imediatamente", relata.

Os dez segundos extras, porém, foram o bastante para, no final, a área destruída ser de 2 centímetros. Isto é, como o tumor tinha 8 milímetros, havia uma margem de segurança e tanto.

Recuperação rápida

Perguntei, por curiosidade, se não ficava ardendo depois, como em qualquer queimadura. "A própria corrente sanguínea funciona como água sobre uma panela quente", garante o doutor Tenório. "Ela esfria rapidamente a região superaquecida e o mal-estar passa quase de imediato."

Em cirurgias convencionais para extirpar um tumor no pulmão, são necessários alguns dias de hospitalização, parte deles na UTI. Mas, nesse caso, o paciente deixou o hospital na manhã seguinte.

"Ele até poderia ter recebido alta no mesmo dia", afirma Luiz Tenório. "Nós o deixamos um pouco mais, já que tinha o problema cardiológico." Ou seja, não ficou lá pelo câncer, não. Este, as micro-ondas —como as imagens com contraste da tomografia provaram durante o próprio procedimento—, já tinham mandado para o espaço.

Essa é uma tendência

"A ablação é feita em muitos centros de oncologia do país", diz Luiz Tenório, com a esperança de que as pessoas queiram discutir esse caminho com seu médico e que ele se torne mais acessível. Até porque, na ponta do lápis, há uma economia em quimioterápicos, cuidados com efeitos adversos, uso de UTI.

Para ser candidato, o tumor precisa ser pequeno —"não ter mais do que 3 centímetros, se estiver no fígado ou no rim, e não ultrapassar 2 centímetros, se for no pulmão", determina o médico.

Além disso, mesmo que os nódulos sejam minúsculos, a ablação é descartada quando eles são numerosos. "Se são muitos, provavelmente a doença está se espalhando velozmente e não estamos enxergando outros focos", raciocina o doutor.

A ablação por micro-ondas também não pode ser feita no cérebro, nem em locais muito próximos a nervos ou do intestino —estes não suportam o calor nas redondezas. Mas, para outros casos, é uma tendência, ainda mais com a possibilidade de ser feita com anestesia local e salvar pessoas que antes, quando eram diagnosticadas com câncer, não tinham a chance de buscar a cura.