Topo

Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Medicina teranóstica: ela trata o câncer de próstata que já se espalhou

Getty Images
Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

21/12/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Quando você entende de onde vem a palavra esquisita, fica até difícil esquecê-la depois: o "tera", de teranóstica, quer dizer terapia. Já a outra metade do nome foi emprestada do termo "diagnóstica". É, portanto, a união desses dois conceitos proporcionada pela Medicina Nuclear — ou seja, algo capaz de acusar uma doença e ainda tratá-la seguindo o mesmíssimo princípio.

Diga-se, nos anos recentes a teranóstica tem dado o que falar no tratamento do câncer de próstata, localizando metástases que, muitas vezes, de tão microscópicas passavam despercebidas até por modernos exames de imagem. E, de quebra, arrasa esses pontos espalhados do tumor em homens que já tinham tentado absolutamente de tudo, inclusive a castração para evitar que seus hormônios alimentassem as células cancerosas, sem com isso impedirem que a doença se alastrasse por boa parte do organismo, dominando principalmente seus ossos.

Com a teranóstica, em duas, três ou, vá lá, em quatro sessões, a imagem do corpo pode parecer limpa, isto é, não mais salpicada de metástases, feito filhotes do tumor original. O câncer, é verdade, não desiste de avançar, mas estudos dizem que, aí, a tendência é fazer isso um pouco mais devagar. Resultado: os pacientes, até então desesperançados, ganham de 15 até 20 meses de sobrevida.

E, mesmo nos homens em que isso infelizmente não acontece, a terapia ao menos encolhe os tumores que cresceram nos ossos, aliviando a dor que eles provocam.

Meio diagóstico, meio tratamento: mas como funciona?

"Nós usamos radiação, mas o que fazemos é bem diferente de uma radioterapia", começa a explicar a médica nuclear Elba Cristina Sá de Camargo Etchebehere, professora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

No final de 2015, no mesmo ano em que despontaram os primeiros estudos sobre a aplicação da medicina teranóstica em pacientes com câncer de próstata metastático, ela foi uma das pioneiras na realização do procedimento no país.

"Na radioterapia, você tem uma fonte de radiação externa apontando para um alvo, que no caso é o paciente", compara a professora, continuando a explicação. "A máquina, então, irradia aquela região onde está localizado o câncer."

Vale considerar que os tumores de próstata estão entre os mais sensíveis a qualquer tipo de radiação. Suas células doentes sucumbem com relativa facilidade quando irradiadas, o que é uma oportunidade.

"Mas, se falamos em teranóstica, a radiação não vem de um aparelho dirigido ao seu corpo", conta a médica nuclear. Não mesmo. Nesse caso, a chave é encontrar uma molécula que aquela célula acometida pelo câncer costuma usar naturalmente para funcionar. Mas nunca assim, sem mais, nem menos.

Antes, no próprio local onde o tratamento é feito, essa molécula é preparada para se tornar um radiofármaco: "Isso quer dizer que eu a ligo a uma partícula radioativa antes de injetá-la", descreve Elba Etchebehere.

Por sua vez, o aparelho — seja ele um PET-scan, que faz a tomografia por emissão de pósitrons, seja a câmara de cintilografia — não emite nenhuma onda. Nadica. Ele apenas capta a radiação onde ela, por acaso, estiver. "Como aquela molécula usada pelas células é absorvida depressa por elas levando a partícula radioativa junto, o equipamento encontra a sua localização exata."

No câncer de próstata

Na história do câncer de próstata, a molécula que se liga com a maior facilidade nas membranas celulares é o PSMA (sigla do nome em inglês para antígeno prostático específico de membrana). "E o PSMA está muito mais presente nas células cancerosas do que nas sadias", esclarece a professora da Unicamp.

Em um primeiro momento, os especialistas em medicina teranóstica fazem com que ele arraste consigo, para dentro do tumor, uma partícula radioativa de gálio, a qual não tem outra função a não ser sinalizar ao equipamento o lugar certo onde ela está, denunciando os locais adoentados.

"Uma vez flagrados os pontos de câncer, em outra ocasião eu vou injetar o mesmo PSMA, mas dessa vez a partícula radioativa que colarei nele, o lutécio, emitirá ondas potentes, capazes de quebrar a fita de DNA, isto é, o código genético das células", descreve Elba Etchebehere. É o fim: elas morrem.

Por que não usar a teranóstica logo que o tumor aparece?

Ora, se o lutécio bombardeia o DNA das células tumorais sem dó, nem piedade, por que não usá-lo bem antes? "Existem momentos diferentes para entrar com a teranóstica, conforme o tipo de tumor", responde Elba Etchebehere. "No câncer de tireoide, por exemplo, o certo é fazer isso poucas semanas depois de a glândula ser operada, eliminando eventuais células malignas que tenham restado e que, adiante, fariam a doença voltar."

Aliás, faz 80 anos que o câncer de tireoide é tratado desse jeito, com a ajuda do iodo radioativo. Portanto, o conceito da teranóstica não é nada novo. O nome, sim, passou a ser usado mais recentemente por cientistas europeus — e pegou.

"Mas, ao contrário do que acontece com a tireoide, você não vai dar PSMA com a partícula de lutécio para quem acabou de retirar a próstata", avisa a médica.

É uma questão de pesar risco e benefício: as imagens da Medicina Nuclear mostram o lutécio sendo eliminado depois de cumprir sua tarefa na próstata. Só que, nessa rota para cair fora, a partícula radioativa passa pelo fígado, pelo baço, pelo intestino, pelas glândulas salivares e pelas lacrimais "Será que vale irradiar todo esse caminho de eliminação?", questiona a professora.

Efeitos colaterais

Na prática clínica, justamente porque dá para enxergar o trajeto preciso de uma substância radioativa, a medicina teranóstica sempre consegue prever quais serão os eventuais efeitos adversos. No caso do tratamento do câncer de próstata metastático, a passagem pelo intestino cria a expectativa de náuseas e diarreias leves, por exemplo. E, no sangue, as plaquetas tendem a cair, mas logo se recuperam.

Ainda assim, quando há somente uma ou duas metástases, os médicos por enquanto preferem a radioterapia focando esses tumores em vez de injetarem o radiofármaco para destruí-los, uma vez que ele irá passear pelo corpo. Mas tudo pode mudar daqui a um tempo. Afinal, existem estudos usando a dupla PSMA-lutécio em fases mais precoces da doença.

Nem sempre é a escolha certa

Outro ponto foi o que Elba Etchebehere apresentou aos colegas médicos durante o 38.º Congresso Brasileiro de Urologia: "Não é porque o paciente com câncer de próstata tem metástase que ele é necessariamente candidato à teranóstica", afirmou.

De fato, quando a célula de um câncer instalado na glândula masculina escapa e forma um segundo tumor em outro canto do corpo, ele pode até ser bem parecido com o original. "Mas, desta primeira metástase, surge uma outra que já pode ser um pouco diferente. E depois outra e outra... ", observa a médica.

No final, em 10% dos casos, as células doentes se multiplicaram de maneira tão alucinada e se diferenciaram tanto que já nem agem como antes. Irreconhecíveis, alteradas, distantes do que um dia foram, elas deixam de captar o PSMA. "Daí, de que adiantará injetá-lo com a partícula radioativa junto?", indaga a professora. Não, não dá para prescrever teranóstica só porque um sujeito tem metástase. É preciso olhar direito antes. Literalmente, olhar.

O curioso é que reside nesse exemplo uma das maiores apostas sobre o futuro da teranóstica: empregá-la para avaliar a escolha de remédios usados no câncer em geral, marcando-os também com alguma partícula radioativa para bisbilhotá-los em plena ação.

Ora, como os tumores vão mudando, a mesma coisa que ocorre com o PSMA, que deixa de ser absorvido como esperado em alguns homens, pode acontecer com outros tumores.

"Não à toa, quando o médico dá uma droga para determinado câncer, alguns indivíduos respondem bem, outros reagem apenas parcialmente e outros, ainda, nem se abalam", comenta a médica nuclear. A teranóstica, então, entraria em cena para mostrar quem é quem.

Se esse campo da Medicina foi muitas vezes apresentado como aquele que trata o que vê, podemos dizer que a recíproca é verdadeira: a teranóstica pode ver, em tempo real, o que está sendo tratado. E assim evitar desperdícios de recursos — e, principalmente, de vidas, quando se investe um tempo precioso com um tratamento que não dará um bom resultado.

Além disso, claro, a gente aguarda mais moléculas específicas para entregar (e tratar) outros tumores. É esperar para ver.