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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Problemas urinários: será que eles seriam mais um sintoma da covid longa?

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

14/12/2021 04h00

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Acordar mais de duas vezes no meio da noite por causa da vontade de ir ao banheiro, sentir vontade de fazer xixi muito mais vezes durante o dia ou ser surpreendido do nada pela necessidade de urinar, precisando interromper imediatamente o que estava fazendo — estas foram as três queixas mais comuns, mas não as únicas, que um grupo de urologistas encontrou em quem teve a covid-19 há mais de seis meses.

Segundo os pesquisadores, quase nove de cada dez pessoas que, um dia, foram infectadas pelo Sars-CoV 2 relatam pelo menos um problema do gênero, o que é uma proporção de cair o queixo. Cerca de de metade delas garante que o que sentem é de moderado a grave. Fica um alerta.

O trabalho, o primeiro a apontar que a chamada covid-longa pode incluir o que os médicos chamam de sintomas do trato urinário inferior, foi apresentado ontem, dia 13, durante o 38.º Congresso Brasileiro de Urologia, pela médica mineira Júlia Duarte de Souza, que atualmente é doutoranda na Universidade de São Paulo, onde faz um fellow no Hospital das Clínicas — o que, na Medicina, corresponderia a uma espécie de estágio — justamente na área de disfunções miccionais.

"Já existia uma série de estudos mostrando que, na fase aguda da infecção pelo coronavírus, alguns pacientes apresentavam questões de trato urinário. Mas ninguém sabia dizer se esses sintomas persistiriam ou não após a covid-19 ou se não seriam capazes de surgir logo depois dela"", conta a urologista. Daí que ela e seus colegas resolveram buscar respostas nesse sentido.

"Aliás, mais do que saber se isso estava acontecendo, a gente queria descobrir se haveria alguma relação com a severidade da doença", completa a médica. Adianto: parece que não.

Os sintomas foram relatados por 88,4% dos pacientes, todos internados no Hospital das Clínicas por causa da covid-19 em agosto de 2020 e avaliados pelos pesquisadores em fevereiro de 2021. "Mas não fez muita diferença se, na ocasião, tinham ficado na enfermaria graças a um estado menos preocupante ou se precisaram de UTI por causa da gravidade da situação", diz a doutora Júlia.

Entenda o estudo

O Hospital das Clínicas paulistano foi, de longe, um dos que mais receberam pacientes com covid-19 na cidade de São Paulo e, por isso mesmo, especialistas de diversas áreas médicas de lá vislumbraram a bela oportunidade checar como andavam os pacientes depois de um tempo da alta. Assim, chamaram 1.957 desses indivíduos para uma nova avaliação.

Mas os urologistas, como diria um conterrâneo da doutora Júlia pelas bandas de Minas Gerais, pegaram esse trem andando. Por isso, o número de pacientes que avaliaram foi bem menor. O estudo sobre sintomas urinários envolve apenas 255 deles, sendo 138 homens e 117 mulheres. Também adianto: eles e elas sofreram igual.

Para evitar qualquer confusão, esses participantes foram comparados entre si conforme a faixa de idade, o nível educacional, o grau de atividade física no cotidiano, o estado de saúde em geral, se tinham algum outro problema feito o diabetes ou não e, claro, de acordo com a sua experiência desagradável com o Sars-CoV 2, se tinha sido mais ou menos grave.

Todos tiveram de responder um questionário que os urologistas conhecem bem, o IPSS (do inglês, International Prostate Symptom Score). "Apesar de, como o nome indica, ele ter sido criado para homens com problemas de próstata, acaba sendo um instrumento muito bom para avaliar problemas de micção em mulheres também", explica.

Pois bem: a noctúria, que estraçalha o descanso de qualquer cidadão, foi o sintoma mais comum entre aqueles investigados por esse questionário. "É como chamamos o quadro em que a pessoa se levanta muitas vezes durante a madrugada para urinar. Pelas respostas, 62% dos entrevistados tinham essa queixa", diz Júlia de Souza.

Na sequência, relatada por exatamente a metade dos indivíduos, veio a frequência miccional aumentada. "No caso, consideramos que têm esse sintoma aquela pessoa que sente a bexiga cheia em intervalos menores do que duas horas", explica a urologista. A urgência para ir ao banheiro, por sua vez, foi apontada por 42% dos indivíduos.

Outras reclamações: sensação de que não se esvaziou todo o líquido guardado (39,2% estavam sentindo isso) ou de que jato de urina já não tem a mesma força de antes (impressão de 29,8%). Isso sem contar a intermitência, reclamação de 29,4% das pessoas — sabe quando o xixi está lá, mas demora uma eternidade para sair? — e a necessidade de fazer um esforço incomum até cair a última gota, algo percebido por 20% dos entrevistados.

Além de contar a quantas andavam os sintomas de eventuais problemas no trato urinário, todos os participantes do estudo registraram como achavam que estava a sua saúde — e, zero surpresa, nesse quesito a satisfação com a qualidade do dia a dia foi nitidamente menor entre aqueles que estavam lidando com sintomas urinários.

Por que mais esse aperto?

A questão é: será que o Sars-CoV 2 seria capaz de infernizar a vida até mesmo na sagrada hora de fazer xixi? "Muito cedo para a gente falar em causa e efeito, ou seja, para espalhar que o vírus causaria isso tudo diretamente", vai logo esclarecendo Júlia de Souza, antes de eu e você sairmos tirando conclusão precipitada. Mas nem por isso é para deixar de ficar esperto.

Alguns pontos, de fato, seriam lacunas no estudo apresentado no congresso. "Esses sintomas urinários não foram avaliados quando o paciente estava com a covid-19 ou até mesmo antes de se infectar", reconhece a doutora Júlia. "Logo, estamos apenas confiando que eles poderiam ser uma novidade, tendo surgido após a doença", informa.

Sim, talvez já existissem no passado. "Mas, talvez também, possam se agravar depois de alguém pegar o coronavírus", pondera a urologista. Para tirar essa dúvida, ela e seus colegas estão tocando um outro estudo, no qual examinam quem acaba de ser internado com covid-19, focando no rastreamento desse tipo de queixa para ver se os problemas pioram ou não, passado o período de alguns meses.

Vale reparar que os sintomas foram mais frequentes em pessoas acima dos 60. Os participantes, diga-se, tinham 57 anos, em média. "E, com a idade, os problemas na hora de urinar se tornam realmente mais comuns", admite a médica.

Uma hipótese, como tudo o que foi relatado tem a ver com a capacidade de armazenamento da bexiga, é que ela tenha perdido parte de sua força depois do vendaval que é a passagem do Sars-CoV2 pelo organismo. E, aí, nesse caso não pelo vírus em si, mas pelo que qualquer infecção mais séria e a internação prolongada detonam a musculatura dos pés à cabeça — com o trato urinário no meio, bem lembrado! Se for assim — ufa! —, esses incômodos deverão ser transitórios.

No entanto, mesmo que ainda não exista uma clareza a respeito de todos os elos entre o coronavírus e o trato urinário, o estudo brasileiro é ótimo para fazer todo mundo prestar um pouco mais de atenção ao ir ao banheiro. Afinal, quem ligaria os pontos entre uma sensação diferente ao urinar e a covid-19 que teve lá atrás?

Note: a não ser quando o problema é muito grave, ninguém costuma comentar espontaneamente nas consultas como está o seu hábito de urinar. E, cá entre nós, minha impressão é de que médicos de outras especialidades mal se recordam do assunto. Perguntam mais sobre o número 2 do que sobre o número 1, se me compreendem.

Uma coisa o estudo da USP já mostra: a prevalência de sintomas urinários em quem teve a covid-19 é maior do que na população em geral. Sinal de que alguma coisa esquisita pode realmente existir. Então, ainda mais se você conheceu o Sars-CoV 2 de perto, não perpetue o tabu de falar sobre xixi com o seu médico.