Topo

Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Adesão ao tratamento: por que é sempre tão difícil tomar remédios direito?

iStock
Imagem: iStock

Colunista do UOL

28/10/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

É um problema em tudo o quanto é canto do mundo — não importa se estamos falando da Coreia do Sul ou da Alemanha, do Líbano ou do México, da Rússia ou de Israel ou, ainda, daqui mesmo, do Brasil. Sob certo ponto de vista, perante uma cartela de comprimidos somos todos iguais.

Nem importa se somos mais ricos ou mais pobres, com maior ou menor escolaridade — como eu chutaria a princípio —, se temos uma doença assintomática ou que vive nos perturbando com mal-estar. Pois até metade de nós, em qualquer lugar deste planeta, acaba não engolindo o remédio como o médico prescreveu — pulando doses, esquecendo os horários, armando uma confusão danada. E um terço interrompe o tratamento antes do fim.

Isso rasga uma montanha de dinheiro. Só na Europa, estima-se que o custo dessa forma de desperdício de remédios gire em torno de 125 bilhões de dólares por ano. Lá, diga-se, de 4% a 31% das pessoas nem se abalam com a receita médica nas mãos e não a seguem à risca logo de cara. Passados dois anos da prescrição, perto de metade já deixou o tratamento de lado.

"Remédio caro é aquele que não tomamos", ouvi mais de uma vez no A:Care, congresso internacional organizado pela Abbott na semana passada, reunindo palestrantes de diversos países para falar justamente do que os médicos poderiam fazer diante do desafio global que é a falta de adesão ao tratamento.

Bom a gente lembrar que o preço mais alto de todos é pagar com a própria vida. Ainda falando de dados europeus, no Velho Continente a falta de adesão provoca 200 mil mortes precoces por ano.

E temos, entre nós, um exemplo claro e recente nos noticiários: ainda hoje, 8,5 milhões de brasileiros não voltaram para receber a segunda dose da vacina contra a covid-19. Eles não apenas correm o risco de pegar a variante delta, a qual só respeita quem completou o esquema vacinal, como fazem com que um número elevado de doses seja perdido.

As maiores causas

Se eu tivesse que resumir as razões apresentadas pelos palestrantes para o problema da adesão, uma das principais seria a falta de informação sobre as doenças, até por obstáculos na comunicação entre leigos e doutores.

Daí que uma alternativa apontada no evento seria envolver toda a rede de saúde no objetivo de educar. No mundo ideal, o farmacêutico atrás de um balcão reforçaria o discurso ensinando como é vital usar medicamentos do jeito certo para controlar determinada condição, por exemplo.

O que também favorece a falta de adesão é que os médicos no mundo inteiro não têm o hábito de fazer uma checagem. Eles raramente perguntam se o remédio receitado no passado está sendo tomado corretamente. Mas fica a dica: se não está, seja o primeiro a falar disso. Uma dose de franqueza cai bem.

Estudos mostram que, quando o paciente não melhora, é mais comum que os médicos troquem o fármaco e não cogitem que o insucesso foi por que o comprimido vira-e-volta acabou sendo esquecido e engolido na hora errada. E, se é assim, a substituição de uma pílula por outra talvez não resolva o problema — seria trocar seis por meia-dúzia.

É bem verdade que os médicos, diante da dificuldade do outro para obedecer suas orientações, às vezes abandonam a empatia e dão broncas, o que não ajuda em nada. E, como foi diagnosticado no congresso, eles nem sempre se sentem bem preparados para lidar com os motivos que fazem alguém deixar de tomar um medicamento, não seguir uma dieta, continuar sedentário ou fumando.

O tamanho da encrenca

Na abertura do A:Care, John Weinman, professor de psicologia aplicada à Medicina do King's College de Londres, apresentou os resultados do ALIGN Study, do qual ele fez parte.

A pesquisa envolveu 7.197 pacientes de 33 países, tratados em mais de 500 centros de saúde muito diferentes entre si. "Mas, em comum, todos eram pessoas com doenças graves e que precisavam de um tratamento de longa duração, se não para a vida inteira", contou.

Pois bem: de 30% a 50% desses indivíduos já tinham abandonado os remédios por uma razão ou por outra. Em muitos casos, os custos ou os deslocamentos para obtê-los influenciaram bastante. Mas vale a gente refletir sobre outras questões que pesariam nessa desistência.

Conversei com os dois médicos brasileiros que também acompanharam o evento, o cardiologista Marcus Bolívar Malachias, que é professor da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais e governador no Brasil do ACC (American College Cardiology), e o pediatra Antonio Fernando Ribeiro, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), onde coordena os estudos e o atendimento aos pacientes com fibrose cística.

"Eu não tomo nenhum remédio!"

"Quem nunca ouviu essa frase de alguém com o peito estufado, usando-a como prova cabal de ter uma saúde de ferro?" A observação é do professor Marcus Malachias. Não que a saída para os nossos problemas seja sempre pela porta de entrada da farmácia. "Mas é provável que uma boa parte dos que se vangloriam desse jeito esteja deixando de fazer um monte de coisas", pensa o cardiologista.

Malachias raciocina, tomando a sua especialidade como exemplo: "No Brasil, de 30% a 40% da população tem hipertensão, outros cerca de 40% têm colesterol alto, até 12% são portadores de diabetes e existe um porcentual semelhante de indivíduos com pré-diabetes. Veja que a probabilidade de alguém ter um desses males silenciosos que necessitam de tratamento não é tão pequena."

Portanto, a uma certa altura da vida, quem se orgulha por não usar medicamento talvez esteja deixando de fazer exames periódicos como deveria — para, quem sabe, sair da consulta com uma receita nas mãos.

A percepção da gravidade

"Temos uma enorme dificuldade para explicar ao paciente por que é preciso tratar uma doença quando ele não sente absolutamente nada e mostrar os benefícios a longo prazo", reconhece, ainda, Malachias.

O médico repara que quase sempre, ao prescrever um remédio para hipertensão, por exemplo, o primeiro questionamento que escuta é se ele não provocaria efeitos colaterais. Atenção, ninguém aqui está minimizando essa preocupação. Mas a confirmação de existir um eventual efeito adverso costuma servir de argumento para o sujeito não se medicar.

"Faltam estratégias eficazes para fazer o paciente perceber a gravidade de algumas situações", completa o médico, que faz a comparação com o câncer. "Quando recebe esse diagnóstico, ninguém titubeia se irá fazer a quimioterapia ou não, por mais que existam reações. As pessoas só se esquecem — ou não sabem — que diabetes, colesterol elevado e hipertensão levam às doenças cardiovasculares que, em todo o mundo, matam três vezes mais do que os tumores malignos."

O professor Antonio Fernando Ribeiro lamenta: "No nosso país, apesar de os anti-hipertensivos serem oferecidos de graça pelo SUS, a adesão é baixíssima e metade dos indivíduos com pressão alta nem vai atrás de remédio".

No entanto, o que mais surpreendeu o pediatra no A:Care foi ver, ao longo das apresentações, que mesmo naquelas doenças que têm manifestações clínicas, como dores e falta de ar, também há muita falta de adesão.

"No final, a baixa adesão é muito semelhante em todas as doenças se o tratamento delas exige cuidados por um período longo ou indeterminado." Ninguém quer fazer tanto esforço, o que provoca o professor Ribeiro a bater na tecla: "O médico, mais do que prescritor, deveria ser um motivador".

Aproveitar a consulta

Ok, vamos combinar que, por mais bem intencionado que seja um profissional da Medicina, o tempo de consulta não o ajuda a investigar o estilo de vida de cada um — ora, os horários dos medicamentos nem sempre se encaixam na rotina de todo mundo e, daí a dupla médico e paciente terá de buscar soluções —, e ainda explicar com calma a doença.

Marcus Malachias reforça a sugestão de dividir, por assim dizer, os assuntos. Em uma consulta explicar o que está acontecendo, no encontro seguinte esclarecer um pouco mais e assim por diante. A mesma estratégia pode ser pensada por nós, pacientes — em vez de dispararmos todas as questões de uma vez, podemos focar em parte delas para mergulharmos fundo na compreensão.

"Ir atrás de associações de pacientes, usar de aplicativos e outros recursos digitais para lembrar o horário de cada dose, levar cuidadores ou um parente próximo na consulta para que toda a família se engaje no desafio da adesão, tudo isso ajuda", acredita Antonio Fernando Ribeiro.

Mudanças nos estudos

O pediatra conta que, em 2000, existiam cerca de 1 mil trabalhos científicos por ano sobre como melhorar a adesão ao tratamento. "Agora, são 15 mil nesse período, o que revela a importância que essa questão vem ganhando", diz.

Por falar em estudos, o fator adesão está sendo englobado nos ensaios clínicos sobre novos medicamentos, em que os participantes são divididos em dois grupos, um que toma pra valer o remédio testado e outro que recebe placebo. "Agora, se 20% das pessoas engoliram a medicação um dia e a abandonaram em outro, essa parcela de participantes segue sendo considerada até o final", explica o professor Marcus Malachias.

Ou seja, o que se leva em conta é a intenção de se tratar — mesmo sabendo que muitas vezes ela não será levada a cabo pelos participantes. Alguns reclamam que, na média, o resultado de um novo tratamento poderia ter sido melhor, se não fossem incluídas aqueles que não obedeceram direito as recomendações. É um modo de ver. Mas outro jeito é pensar que estudos assim refletem a vida real, em que as pessoas infelizmente nem sempre fazem tudo o que a ciência orienta.