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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Mais fácil a água parar de molhar do que uma vacina causar imunodeficiência

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

25/10/2021 16h09

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Ouvimos, você deve saber de quem, que a chuva escorre na direção do céu, que passarinho com asa quebrada voa que é uma belezura, que o fogo é gelado e que, quem sabe, a Terra seria o centro do universo, além de plana feito uma tábua.

Mentira. Não vale combater fake news com mais fake news. De verdade, o que ouvimos foi o presidente Jair Bolsonaro soltar que a vacina contra a covid-19 causaria a imunodeficiência humana adquirida — e logo foi deduzido que seria como aquela produzida pela infecção pelo vírus HIV.

É cientificamente tão absurdo quanto as afirmações no início deste texto falar que qualquer vacina contra qualquer doença que passar pela sua cabeça levaria à incapacidade do sistema imunológico de nos defender contra infecções diversas e, de quebra, varrer do corpo células malignas que seriam o estopim de um câncer —sim, porque todo dia o nosso corpo gera algumas células malignas e todo dia o seu sistema imune corta o mal de um tumor pela raiz.

De fato, o organismo de alguém que, por qualquer motivo, tenha uma imunodeficiência pode — ora, se o sistema imune, como o próprio nome indica, está deficiente ... — deixar um agente infeccioso passar bem debaixo do seu nariz ou um tumor crescer batido. Ironia: essa pessoa precisa mais do que ninguém de estar com a sua carteira de vacinação em dia.

Aliás, conforme lembra a nota de esclarecimento da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia) diante do último disparate, "pessoas com HIV/Aids devem ser completamente vacinadas para covid-19", destacando inclusive a liberação de uma terceira aplicação de reforço para todos os portadores desse vírus que receberam a segunda dose há mais de 28 dias.

Portanto, quem tem imunodeficiência carece de vacina a mais — e nunca a menos. Justamente porque a vacinação não impede o sistema imunológico de fazer o seu serviço, deixando-o deficiente. Faz o contrário disso, tornando-o bem mais eficiente ao treiná-lo para derrotar o inimigo. E as defesas de quem tem imunodeficiência até precisam de treino extra, como um aluno com dificuldade de aprendizado necessita de aula de recuperação.

"As vacinas são o meio mais eficaz de a gente reduzir as doenças infecciosas, não só a covid-19", afirma, categórica, a infectologista Tânia Vergara, coordenadora de terapêutica do comitê de HIV/Aids da SBI e presidente da SIERJ (Sociedade de Infectologia do Estado do Rio de Janeiro).

Ricardo Diaz, infectologista, professor da Escola Paulista de Medicina da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), onde chefia o Laboratório de Retrovirologia, sendo considerado um dos principais pesquisadores de HIV do país, pede para repararmos no seguinte: "A gente nunca conseguiu erradicar nenhum patógeno sem vacinas." Outra verdade. Quem dispara contra a vacinação prega pela continuidade do pesadelo.

"A sífilis está aí para dar uma ideia", exemplifica o professor. Nos últimos três anos, foram mais de 360 mil casos registrados no país, de acordo com o Ministério da Saúde. E olha que a bactéria Treponema pallidum por trás da sífilis tem remédio. Pode ser derrotada por antibióticos. No entanto, sua transmissão segue desenfreada e ela continua nos atormentando com feridas, danos ao coração e ao sistema nervoso, malformações fetais e morte. Por quê? Porque não há vacina.

A questão da imunodeficiência

Atenção: é impossível que o sistema imunológico saia pior do que já estava para enfrentar suas batalhas depois de alguém ser vacinado. Ora, uma vacina é sempre uma espécie de pirraça para que as defesas ajam contra um agente infeccioso específico, o que é diametralmente o oposto de induzi-las a cruzarem os braços.

A recíproca é que não é verdadeira: alguém com idade avançada ou com imunodeficiência por qualquer motivo pode não responder tão bem aos imunizantes e não ficar tão protegido.

"Mas a imunodeficiência nunca foi observada como um possível efeito nos estudos sobre qualquer vacina existente —nem em células, que é por onde começamos as pesquisas de um novo imunizante, nem em animais, nos quais são feitos os primeiros testes, nem em seres humanos, na etapa final antes da aprovação", garante o professor Ricardo Diaz.

Efeitos colaterais

Será que está se dizendo que vacinas não têm efeitos adversos? Nada disso. "Honestamente, elas podem ter e devemos ficar atentos a eles. Mas não tem como ser imunodeficiência", explica o infectologista.

Diga-se que efeito adverso a gente pode ter até depois de ingerir alimento. Mas ninguém proíbe paçoca em festa de São João porque existem pessoas alérgicas a amendoim. E há um bocado mais de gente alérgica a amendoim no planeta do que com trombose depois da vacina de Oxford ou de miocardite após receber a injeção da Pfizer. Espero que este parágrafo não dê margem para uma declaração pelo fim das quermesses, vai saber!

O Sars-CoV-2 não é o HIV

"As vacinas contra a covid-19 não contêm vírus vivo. Logo, são incapazes de provocar essa doença", reforça a médica Tânia Vergara. Recapitulando: a CoronaVac utiliza o Sars-CoV-2 inativado ou morto. A da AstraZeneca lança mão de um pedacinho dele dentro de um vírus de chimpanzé. "E a da Pfizer usa a molécula de RNA mensageiro, que instrui o sistema imune para que produza proteínas encontradas na superfície do novo coronavírus", completa a médica.

Se não trazem o próprio Sars-CoV-2, muito menos carregam o HIV, que infecta justamente determinadas células de defesa e, ao se multiplicar dentro delas, acaba as destruindo. Daí a imunodeficiência da Aids.

Um sistema imune muito ocupado

Ainda procurando entender de onde teria vindo tamanho equívoco, Tânia Vergara conta que, transitoriamente, ficamos mais vulneráveis ao tomarmos uma vacina qualquer.

"Quando o sistema imunológico entra em contato com um agente infeccioso, seja por uma infecção real ou por meio da vacina, é como se ele ficasse ocupado tentando resolver aquela situação. E ele tem um limite de capacidade", diz ela, que compara: "Imagine alguém preparando café, segurando a chaleira de água fervente em uma mão e o coador, em outra. Se algo cair no chão nesse momento, a pessoa não terá como apanhar imediatamente."

É mais ou menos assim. É por isso que pedem para adiarmos uma vacina se, no dia marcado para tomá-la, acordamos com febre. A intenção é esperar só um pouco até que o quadro melhore, para sistema de defesa seja capaz de se dedicar inteiramente a dar a melhor resposta possível.

Nesse raciocínio, enquanto constrói sua defesa contra o Sars-CoV-2, em tese o organismo poderia ficar ligeiramente mais vulnerável a outras infecções. Mas isso não duraria muito.

"É um fenômeno tão rápido e fugaz que nem sei se deve ser considerado", afirma Tânia Vergara. A vulnerabilidade passageira, bem entendido, tampouco pode ser tida como imunodeficiência, que é um estado mais perene.

O que a Aids tem de parecido com a covid-19

"Já presenciei o surgimento de duas novas doenças", me disse o professor Ricardo Diaz. Quem passou dos 40, 50 anos de idade sabe do que ele está falando — da Aids, no início dos anos 1980, e da covid-19 nos últimos tempos. Para o infectologista, a sensação é de um filme que se repete em vários aspectos. A começar pelo desconhecimento e por notícias falsas.

O professor observa que a Aids só ficou mais sob controle quando foram combinadas estratégias comportamentais — como o uso de camisinha— e medicamentos. Na covid-19 será a mesma coisa. Dependeremos por tempo indeterminado do uso de máscaras, testes para saber quem tem a doença e vacinas, esperando que surjam, como existem para a Aids, remédios capazes de cortar a cadeia de transmissão quando alguém pegar o vírus.

"O inimigo da vez continua no ar", reforça Ricardo Diaz. "Devemos fazer a nossa parte e ela inclui tomar vacinas", sublinha. E também não dar ouvidos ao que não faz o menor sentido. Porque a chuva cai do céu, passarinho precisa de asas para voar, a Terra é redonda e vacinas não causam imunodeficiência.