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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Quando e como parar de tomar remédios contra a depressão?

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

19/10/2021 04h00

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Dá para imaginar o quanto a pergunta é frequente. Ora, antes mesmo da pandemia, com 5,8% da população deprimida — acima da média da taxa global de 4,4% —, o Brasil com aquela imagem risonha só pra inglês ver já liderava o ranking desse transtorno mental na América Latina.

E até podemos deduzir que o poço de tristeza onde caímos aumentou um bocado, como um dos perversos efeitos colaterais da chegada da covid-19. Por aqui, as vendas de antidepressivos, de acordo com dados do Conselho Federal de Farmácia, saltaram de 56,3 milhões de caixas no primeiro semestre de 2019 para 64,1 milhões no mesmo período de 2020.

É natural pensar que, entre os pacientes que tomam remédios para depressão, existam aqueles que, mais dia, menos dia, começam a matutar a ideia de interrompê-los — seja porque já se sentem melhor ou porque temem uma eventual dependência dos medicamentos e suas reações colaterais. Mas, ao deixá-los, o risco de surgir uma nova crise depressiva existe, fazendo com que, para uma parcela dessa gente, a decisão acabe sendo infeliz.

Portanto, um outro jeito de fazer o mesmíssimo questionamento é o seguinte: até que ponto vale prescrever esses remédios a uma pessoa que aparentemente já está bem com a única intenção de evitar que uma depressão volte? Será que podemos falar em uso preventivo de antidepressivos?

Recentemente, foi realizado um estudo britânico para enfrentar essas questões. Segundo seus autores da University College London, ninguém nega que esses remédios são importantes na fase aguda da doença. Assim como existem boas evidências de que o tratamento de manutenção feito com eles seja efetivo quando as pessoas os usam por um período de até nove meses.

No entanto, há um bocado de incertezas se, a partir desse prazo, faria sentido continuar se medicando. Bom repetir a máxima de que cada caso é um caso. Mas, no Reino Unido, onde foi realizada pesquisa, mais de metade das 53 milhões de prescrições anuais de antidepressivos são para pessoas que já estão tomando esse tipo de droga há mais de dois anos. Talvez aqui não seja tão diferente.

Como foi o estudo britânico

Os pesquisadores incluíram 478 pessoas entre 18 e 74 anos, sorteadas em 150 clínicas espalhadas pelo Reino Unido, que tomavam um dos quatro antidepressivos mais comuns do mundo, os quais, juntos, representam 75% das prescrições.

Óbvio, ninguém estava em plena crise quando topou participar da investigação. Mas todos tomavam antidepressivos há pelo menos dois anos — a maioria, há mais de três anos, diga-se — , embora se sentissem psicologicamente bem e se perguntassem se já não poderiam abandonar os remédios depois de tanto tempo. Por isso, aliás, toparam entrar para o estudo.

Uma parte continuou sendo medicada pra valer. Mas outra parte, formada por 240 pessoas, engoliu comprimidos falsos sem saber. Nem sequer os pesquisadores tinham a menor noção de quem era da turma que estava recebendo antidepressivo de verdade ou do time do placebo, configurando o que na ciência é chamado de estudo duplo-cego, em que os achados não são influenciados pelo conhecimento de quem está sendo tratado e quem não está.

Durante 52 semanas, a saúde mental de toda essa gente foi checada periodicamente para ver se não haveria qualquer recaída da depressão. Só que, infelizmente, ela aconteceu para 39% dos que estavam tomando antidepressivo e para 56% no grupo que descontinuou o remédio.

É importante reparar que o risco de recaída foi duas vezes maior em quem, no passado, tinha vivenciado três ou mais episódios de depressão. Ao que tudo indica, o número de vezes em que alguém tropeçou na tristeza e não conseguiu se levantar depois seria um fator importante na história.

O que deve ser levado em conta

Coordenador do livro "Transtornos Psicológicos: Terapias Baseadas em Evidências" (Editora Manole) e doutor em psicologia experimental pela USP (Universidade de São Paulo), onde hoje é professor da especialização em terapia comportamental no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, o psicólogo Paulo Abreu acredita que a decisão de continuar com os antidepressivos deve passar, em um primeiríssimo momento, por uma reflexão sobre a vulnerabilidade de cada um.

"Se a pessoa ficou sem emprego ou se está enfrentando muita dificuldade financeira, se perdeu alguém para a covid-19 ou por outra causa qualquer nos últimos tempos, se está no meio de um divórcio ou de um relacionamento complicado, por mais que ela tenha se recuperado, o risco de acontecer uma nova crise depressiva é maior", ele exemplifica. "Portanto, mesmo que ela esteja aparentemente bem, essa pode não ser a melhor fase para deixar os remédios."

Note que, no estudo britânico, o único critério foi não estar deprimido no momento específico e se medicar por um período mais extenso, sem considerar eventuais circunstâncias que aumentariam a vulnerabilidade individual.

Especialista em ativação comportamental, linha de psicoterapia considerada pela OMS (Organização Mundial de Saúde) como a mais efetiva para ajudar alguém a sair da depressão, dividindo-se entre São Paulo e o Paraná, onde é um dos responsáveis pelo Instituto de Análise do Comportamento de Curitiba, Paulo Abreu esmiuça: "Às vezes, não é só observar o momento atual. Existem perfis de indivíduos que podem ser mais sujeitos a novos episódios de depressão."

Ele admite que, nos anos 1990, quando se formava psicologia e ouviu falar de uso preventivo de antidepressivos, até passou por sua cabeça que essa era uma ideia impulsionada por, digamos, valores de mercado. Hoje reconhece que não é bem assim. Ao menos, nem sempre.

"Depois de muitas horas de poltrona cuidando de pessoas com depressão, reparo que são mais elegíveis à continuidade do tratamento com remédios aqueles pacientes idosos, indivíduos com outras doenças que podem servir de gatilho para crises depressivas — é o caso daquelas que provocam dores crônicas —, gente que mora sozinha e que, mais do que isso, não tem ao seu redor quem lhe ofereça um suporte, vivendo longe da família ou da cidade natal. Tudo isso precisa ser considerado, porque leva a uma menor tolerabilidade aos problemas do dia a dia."

Merece ser sublinhado: qualquer tentativa anterior de suicídio é motivo de sobra para não se arriscar um adeus aos remédios.

O acompanhamento no desmame

Os antidepressivos, frisa Paulo Abreu, devem ser prescritos por médicos — e ponto. "Além disso, no mundo ideal, esses remédios seriam indicados por psiquiatras", avisa.

Mas a gente sabe que especialistas de outras áreas da Medicina acabam passando a receita por uma série de motivos. E moram aí alguns perigos. Um deles seria o de você usar uma substância neuroquímica, que age no sistema nervoso central, contra tristezas que fazem parte da vida de qualquer cidadão e com as quais seria possível lidar sozinho ou com a bem-vinda ajuda de psicoterapia.

Outra ameaça costuma ser ainda maior: "Por melhor que seja um cardiologista, um ginecologista ou um clínico geral, esse médico talvez não saiba diferenciar, na hora de fazer o diagnóstico, uma depressão de um transtorno bipolar, que deveria ser tratado com outras medicações", diz Paulo Abreu.

Se, para receber a prescrição do remédio, seria ótimo ter um psiquiatra por perto — o que, vamos reconhecer, nem sempre é viável —, para tirar o antidepressivo de cena isso se tornaria mais importante ainda. Assim, mesmo quando a prescrição veio de outro consultório, fica a dica: discuta a possibilidade de interrupção com especialistas em saúde mental. "De todo modo, a supervisão médica é necessária e, geralmente, os antidepressivos não devem ser cortados de uma vez", explica Paulo Abreu.

Quando, afinal?

Antidepressivos e psicoterapia — os dois podem ser tremendamente efetivos na depressão e, muitas vezes, andam juntos. Mas tanto o trabalho britânico quanto outros estudos sobre o tema concluem que é mais seguro desmamar dos antidepressivos quando a pessoa faz psicoterapia. Tem lógica: as sessões preparam o indivíduo para enfrentar o seu dia a dia.

"No caso da ativação comportamental, ela visa a solução de problemas de um lado e a busca de fontes de prazer na vida de outro, que são aquelas atividades capazes de nos encher de ânimo, com interagir com amigos, tornando o cotidiano mais satisfatório", explica Paulo Abreu.

O fato, porém, é que a psicoterapia não é acessível para todo mundo. "E também precisamos assumir que algumas pessoas, mesmo com depressão, simplesmente não querem fazê-la. Não acreditam que irá funcionar e preferem ir direto ao antidepressivo mesmo", diz Paulo Abreu, que se recusa a entrar em uma queda de braço sobre qual seria a melhor saída. "O essencial é não deixar alguém com depressão desassistido. Com psicoterapia ou com remédios, talvez com os dois, essa doença que precisa ser tratada", opina.

E, se for com remédios, o estudo britânico só reforça a impressão de que eles deveriam ser mantidos por um período de seis a nove meses quando a pessoa só teve uma crise depressiva e por cerca dois anos, antes de uma reavaliação, se a depressão é recorrente. Só então é que se pode cogitar deixar os comprimidos para trás e — tomara! — ser feliz sem eles.