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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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A miocardite não é desculpa para suspender a vacinação dos adolescentes

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

17/09/2021 09h27

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"Pais, não levem seu filho adolescente sem comorbidade para tomar a vacina de covid-19, fazendo algo que não tem a aprovação da Anvisa", ouvi isso mesmo?! O apelo foi feito pelo Ministro da Saúde Marcelo Queiroga em seu pronunciamento na tarde de ontem (16), ao suspender a vacinação de jovens de 12 a 17 anos sem qualquer problema de saúde ou que não sejam privados de liberdade.

Em um país onde a cobertura vacinal para todo tipo de doença, outrora exemplar, está em uma alarmante derrocada em todas as faixas de idade, tivemos o exemplo do que pode empurrar ladeira abaixo a confiança da população nas vacinas de modo geral. E o que é bem triste: as motivações provavelmente foram as pressões políticas de sempre, que não fazem nada bem à nossa saúde.

Ninguém está defendendo esconder eventuais riscos —como o da citada miocardite, que já, já vou explicar. Nem se trata de uma opinião pessoal, mas do que dizem os médicos e o que apontam as evidências científicas. Elas não vão nessa direção.

Ontem também, à noite, a SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações) divulgou um posicionamento que coloca os pingos nos "is". Vale a pena resumir aqui pelo menos alguns de seus pontos.

Primeiro, quando a OMS (Organização Mundial de Saúde) é citada, colocam uma informação que essa entidade nunca assinou embaixo: de acordo com o SAGE (sigla em inglês para Grupo Consultivo Estratégico de Especialistas da organização), as vacinas de RNA mensageiro, como a da Pfizer, são adequadas para quem tem acima de 12 anos, entendido?

Um segundo ponto importantíssimo: a Anvisa, igualmente citada, ao aprovar a vacina da Pfizer para meninos e meninas entre 12 e 17 anos não restringiu o seu uso a jovens com comorbidades. Ou seja, ela aprovou essa vacina para todo e qualquer adolescente. Então, pais, quem levou ou pretende levar os filhos nessa faixa etária para se vacinar contra a covid-19 não está fazendo nada contra a recomendação da Anvisa. Fique claro.

O próprio Ministério da Saúde, que tinha aprovado essa vacinação dias antes, ao suspendê-la emitiu uma imponente nota técnica pedindo investigação de miocardites. Só que também vem do Ministério o seguinte número, vejam se tem cabimento: existem até o momento 1.545 episódios de eventos adversos após a vacina entre os mais de 3,5 milhões de adolescentes vacinados.

Feitas as contas, isso significa que a proporção dessas encrencas é de irrisório 0,043%. Mas aí vem a cereja do bolo, usando também dados oficiais do mesmo governo federal: nove em cada dez desses casos de reações adversas, ou precisamente 93%, têm a ver com o que, no linguajar dos especialistas, é chamado de erro de imunização.

É quando, por um terrível engano, aplicam em uma pessoa outra vacina qualquer —portanto, nesse contexto não a da Pfizer, aprovada para o público adolescente e agora, no que depender do Ministério, suspensa para a garotada sem comorbidade.

"Nós ficamos muito preocupados não só com a nota técnica, como com a própria posição do Ministério da Saúde ao suspender a vacinação dos adolescentes sem comorbidades, porque isso gera muita insegurança na população", me disse o pediatra intensivista Juarez Cunha, que é presidente da SBIm.

É claro que, se existissem motivos que justificassem, nem estaríamos discutindo isso aqui. Mas nenhuma das razões apresentadas justificam a decisão tomada pelo Ministério. Juarez Cunha, que é presidente da SBIm

A reação adversa da miocardite

Ela é uma inflamação do músculo cardíaco e pode ser consequência de uma série de infecções virais ou até mesmo de vacinas contra vírus. Até então a da varíola era a mais conhecida pela possibilidade de levar a esse efeito adverso.

A inflamação no coração pode ser bem leve e passar ligeiro, ou seja, ser o que os médicos definem como uma condição autolimitada, que não avança sem parar, nem cria maiores complicações. Ou pode, sem os devidos cuidados, deixar esse músculo cada vez mais fraco, o que leva à insuficiência cardíaca, batimentos fora do ritmo normal e, em casos extremos, à morte súbita.

Respire fundo e sossegue: os casos de miocardite depois da vacina com RNA mensageiro, feito a da Pfizer, não apenas são raros como praticamente todos eles são leves.

Quando surgiram os primeiros relatos do problema em quem tomou a vacina da Pfizer ou a da Moderna —a qual tem a mesma tecnologia ou plataforma, mas não é aplicada no Brasil—, o CDC americano (Centers for Disease Control and Prevention) apresentou dados que causaram certa surpresa.

A infectologista Rosana Richtmann, médica do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo, explicou o porquê em sua aula sobre a vacinação de crianças e adolescentes durante a 23ª Jornada Nacional de Imunizações, evento promovido na semana passada pela SBIm e que reuniu mais de 2.500 especialistas.

"Por alguma razão, a incidência —embora seja baixíssima— é maior na faixa dos 12 ao 17 anos do que se eu olhar para os gráficos de quem tem entre 30 e 39 anos", mostrou ela na ocasião. "E o mais espantoso: se eu comparar meninos e meninas depois da segunda dose, vou encontrar um número bem maior de casos nos garotos."

Aliás, duas informações para você guardar: esse problema raro, quando acontece, costuma aparecer depois da segunda dose e é para ficar mais de olho ainda no adolescente do sexo masculino. Por quê?

"Nenhuma explicação até o momento é muito convincente", nota Jacy de Andrade, professora titular de doenças infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da UFBA (Universidade Federal da Bahia). Foi ela quem deu uma aula sobre miocardite como efeito adverso da vacina de RNA mensageiro contra a covid-19 no evento da SBIm.

"Há quem diga que o problema aparece mais no sexo masculino por uma suscetibilidade genética", conta ela. "Outros falam que o estrógeno, hormônio feminino, de alguma maneira protegeria o coração das meninas. Tudo é suposição. De modo geral, o que se imagina é que a fibra do miocárdio talvez se pareça com alguma proteína expressada pelas vacinas de RNA mensageiro e, então, haveria uma reação cruzada." Em outras palavras, uma espécie de confusão molecular em que o coração pagaria o pato.

Vacina versus covid-19 em adolescentes

coronavírus, derrotando o vírus, BBC - Getty - Getty
Imagem: Getty

Antes que alguém fique preocupado, dados muito recentes mostram claramente o seguinte: se a gente olha para meninos e meninas entre 12 e 17 anos que sempre foram saudáveis, mas que vão parar no hospital, precisar de UTI e eventualmente morrer por causa da infecção pelo Sars-CoV-2, esse número é muito maior do que o de casos de miocardite pós-vacina entre eles.

Aliás, o risco de um jovem desenvolver a própria miocardite ao pegar a covid-19 é nada menos do que 16 vezes maior. E isso, volto a frisar, quando falamos de garotos e garotas saudáveis, sem comorbidades. Se examinarmos jovens com algum problema de saúde prévio, esse perigo todo só aumenta.

"No Brasil, a covid-19 já provocou cerca de 2.000 mortes em pessoas abaixo dos 20 anos", lembra Rosana Richtmann. "Alguém pode me dizer que é uma porcentagem baixa no total de mortos pela doença, ficando em 0,34%. No entanto, é um número muito maior do que o de óbitos provocados pela meningite e por outras infecções graves que poderiam ser prevenidas por vacinação", compara.

Essa matemática evidencia: o benefício da vacinação em adolescentes supera de longe os riscos do imunizante da Pfizer. No entanto, como lembra a professora Jacy de Andrade, a população não mede o risco por números: "As pessoas avaliam sentimento", observa. "E o medo provocado por informações desencontradas só faz aumentá-lo."

Quais os sintomas da inflamação no coração?

"Eles podem ser extremamente leves e pouco específicos, como uma sensação de moleza. Alguns indivíduos têm uma ligeira falta no ar, uma dorzinha ou aperto no peito e até uma arritmia, mas nada muito importante. E existem casos em que aparece a febre", conta a professora Jacy.

Grave isso: na maioria das vezes, esses sintomas surgem uns quatro dias após a segunda dose. "É, portanto, na primeira semana subsequente a ela que os pais e os profissionais de saúde devem ficar mais espertos", informa a médica.

Segundo ela, o grande problema é que a própria pessoa nem se dá conta. "Principalmente um adolescente, que vai achar normal não ter disposição para nada em determinado dia ou nem vai reparar se perder o fôlego correndo. O desafio para o médico é valorizar esses sintomas, se um jovem que foi vacinado contar que está se sentindo assim. Porque o que estamos vendo não se parece com aquelas miocardites clássicas, com muita dor ou muita falta de ar, por exemplo. Essas são raríssimas pra valer."

O diagnóstico é feito a partir do exame clínico, com olhar atento a essas manifestações, pedidos de exames de imagem e a dosagem de determinados biomarcadores no sangue. Se confirmado, o tratamento com remédios é simples, mas envolve uma coisa bem chata, ainda mais para um adolescente: a ordem é poupar o coração que se recupera, o que significa ficar sem praticar qualquer tipo de atividade física por um tempo. "O período pode ser de três meses a um ano, conforme o caso", diz a doutora Jacy.

A necessidade de vacinar crianças e adolescentes

Claro, a vacinação nem chegou nas crianças ainda. Mas ouvi da Rosana Richtmann no evento da SBIm que elas e os adolescentes são um capítulo importante na história do controle da pandemia. "Se perguntarem se é melhor vacinar a população mais vulnerável, como os idosos e os imunossuprimidos, ou esses jovens, lógico que escolheria a população mais vulnerável, já que eu não tenho vacina para todo mundo, como seria o cenário ideal."

As crianças, de fato, têm um risco pequeno de ficarem doentes quando contraem o Sars-CoV-2. Só 2% dos pequenos infectados acabam indo para o hospital. E, para cada 3.500 crianças com covid-19, apenas uma delas morre. Já em adultos a doença ainda mata um em cada 60 pacientes que não foram — repito, que não foram — vacinados. Então, não dá para comparar.

"No entanto, não podemos perder de vista que aproximadamente 25% da população brasileira têm menos de 18 anos", lembra Rosana Richtmann. De fato, como controlar a covid-19 entre nós deixando um quinto da população à margem da vacinação?

Daí que ninguém do meio científico insiste em ainda discutir a importância de vacinar os mais jovens, nem coloca em pauta que o risco do imunizante da Pfizer, o único até o momento aprovado para a faixa dos 12 aos 17 anos, é infinitamente pequeno perto das ameaças do Sars-CoV-2 ao futuro dessa moçada —inclusive por causa de suas sequelas.

O que podemos discutir é prioridade, ou seja, quem toma a vacina primeiro, se não há doses para todos. Mas esse é outro papo.