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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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H. pylori: a bactéria da úlcera pode causar anemia, AVC e muito mais

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

09/09/2021 04h00

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Praticamente sete em cada dez brasileiros carregam no estômago uma hóspede de respeito, que não está nem aí para as condições locais, se o pH, hostil, oscila entre 1,5 e 2. Para ter ideia, o mais azedo dos limões tem um pH de 1,8.

A descoberta de que um micróbio era capaz de colonizar esse pedaço aguentando de boa toda essa acidez — ora, justamente por causa dela o ambiente estomacal era tido como estéril — e, mais, a revelação de que ele estaria por trás de gastrites e úlceras renderam um Nobel de Medicina ainda em 2005 aos australianos Barry J. Marshall e J. Robin Warren.

De lá para cá, a lista de acusações dirigidas à Helicobacter pylori, que os médicos muitas vezes chamam simplesmente de H. pylori, aumentou sem parar. E, não à toa, ela foi assunto de algumas excelentes aulas no IV Congresso Brasileiro de Doenças Funcionais do Aparelho Digestivo, que aconteceu entre o último sábado (4) e o feriado de 7 de setembro.

"O estômago deixou de ser o prato favorito da nossa bactéria", brincou um dos mais respeitados gastroenterologistas do país, o professor Schlioma Zaterka, da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo). "Hoje sabemos que sua infecção pode ter manifestações no sangue, no fígado, no coração, no cérebro, na pele...". Foi sobre esses males que ele falou na apresentação que fechou o evento.

Associações dessa bactéria com problemas como o Alzheimer ou o infarto ainda têm um quê de incerteza. Nesses casos, alguns estudos apontam o dedo em riste para a H. pylori, enquanto outros não encontram motivos justos para condená-la.

"Muita coisa ainda está no território da especulação, nem por isso devemos ficar menos atentos", diz o gastroenterologista Décio Chinzon, presidente da FBG (Federação Brasileira de Gastroenterologia), professor assistente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e, também, chefe do setor de gastroenterologia e endoscopia da DASA.

Entretanto, segundo o médico, o envolvimento da H. pylori com doenças hematológicas, com destaque para a púrpura e a anemia ferropriva, já está muito bem demonstrado pela ciência. E, em relação ao câncer gástrico, ninguém duvida que essa bactéria tem culpa no cartório. "É uma relação absolutamente inquestionável", afirma o médico.

A própria OMS (Organização Mundial da Saúde) reconhece a H. pylori como um carcinogênico classe 1. Isso significa que, como estopim de um câncer, ela está para o estômago como o cigarro está para o pulmão.

A começar pelo estômago

Lá se vão 14 anos de quando a dupla de professores, Schlioma Zaterka e Décio Chinzon, ao lado de mais dois colegas, analisou 1.008 amostras de doadores de sangue. Queriam ver se encontravam anticorpos contra essa bactéria que movimenta seus flagelos feito uma hélice para navegar com desenvoltura no muco que reveste a parede estomacal. Daí o nome, Helicobacter.

"Atenção, esses doadores não tinham queixa de dor, nem de problemas digestivos", ressalta Chinzon. Mesmo sem reclamarem da barriga, 67% deles tinham a tal bactéria. A proporção de infectados era ligeiramente menor em pessoas brancas, refletindo na cor da pele a terrível desigualdade social que faz com que haja mais indivíduos negros habitando lugares com condições sanitárias precárias.

"A H. pylori é transmitida por meio de água e alimentos contaminados, sendo mais frequente quando faltam condições de higiene ideais e saneamento básico", ensina o gastroenterologista.

De acordo com o Inca (Instituto Nacional de Câncer), a estimativa é de 21 mil novos diagnósticos de câncer gástrico no país ao ano. "Se existem mais de 142 milhões brasileiros com essa bactéria, por que o número de pacientes com câncer no estômago é tão baixo?", levanta a bola o próprio professor Chinzon. E, em seguida, corta: "Porque, apesar de o fato de ter a H. pylori já deixar a pessoa com um risco médio de desenvolver um tumor, também contam fatores genéticos e ambientais."

No Japão, eles testam e tratam todos os indivíduos infectados para acabar com a raça da H. pylori. "Mas, lá, o câncer de estômago é o tumor maligno mais frequente. Então, compensa para a saúde pública fazer o rastreamento de toda a população e prescrever o tratamento para qualquer um que apresente a infecção", justifica Décio Chinzon. O Chile, por motivos parecidos, vai pelo mesmo caminho.

Para erradicar a bactéria

Aqui, no Brasil, os gastroenterologistas tratam a infecção pela H. pylori quando há úlcera — no estômago ou no duodeno, que é a porção inicial do intestino delgado — ou se o paciente sofre demais por conta de uma gastrite.

Existem aqueles que têm a H. pylori e não sentem nada, como os doadores de sangue do estudo. Mas, quando há casos de câncer gástrico na família, a ausência de sintomas não é garantia de escapar da mesma sina e, portanto, esses indivíduos também devem ser tratados.

Os médicos receitam, então, um remédio para inibir a acidez estomacal combinado com dois antibióticos por duas semanas. No passado, bastavam sete dias, mas a H. pylori já vem criando resistência à medicação, pena. Ah, sim, o tratamento para derrotá-la causa efeitos colaterais , como diarreia e sensação de barriga embrulhada, fazer o quê!

"O que não dá é para largá-lo no meio", avisa Décio Chinzon. "Isso só fará a bactéria se tornar mais e mais resistente." Aproveitando para dar o recado: é péssima a ideia de tomar antiácidos e afins sem prescrição. Mascarar os eventuais estragos de uma H. pylori é perigoso.

Um mês após o final do tratamento com o trio de remédios, os gastroenterologistas repetem os exames para checar se a H. pylori foi mesmo varrida do organismo. A questão é: será que valeria a pena fazer essa erradição para prevenir ou aliviar outros males?

Na anemia ferropriva

Em sua aula no encerramento do congresso, o professor Schlioma Zaterka explicou que a H. pylori pode nos deixar anêmicos por três caminhos. "A própria infecção no estômago é capaz de levar a uma gastrite ou a úlceras com perda de sangue", disse. "Além disso, a bactéria causa uma diminuição significativa de certos ácidos que participam da digestão, como o clorídrico, e isso atrapalha a absorção do ferro dos alimentos. Por último, a própria H. pylori pega para si e armazena esse mineral."

Para o professor, quando a suplementação de ferro não está resolvendo a anemia, os médicos deveriam desconfiar da bactéria no estômago. Ele mostrou estudos parrudos apontando que, se a pessoa está infectada por ela, erradicá-la e prescrever suplementos dá mais resultado do que só engolir comprimidos de ferro.

Em um trabalho com 331 crianças do Brasil, do Chile e da Inglaterra, os autores notaram que a H. pylori provocava uma diminuição da hemoglobina e da ferritina no sangue. Por causa disso, sugerem o tratamento para liquidá-la antes de surgir uma anemia pra valer, atrapalhando o desenvolvimento da meninada.

Na púrpura

Nessa doença, também conhecida como trombocitopenia imuno primária, os anticorpos atacam as plaquetas, células cruciais para a coagulação do sangue. Geralmente, os médicos indicam corticoides, para conter a fúria do sistema imunológico nesses ataques. E, assim, cerca de 73% dos pacientes conseguem resolver a situação. Mas a doença reincide em cerca de metade deles tempos depois.

"Já na combinação de corticoides com o tratamento para erradicar a H. pylori, os dados mostram que a cura alcança 94% e apenas 17% vêem a púrpura voltar", contou o professor Zaterka no congresso.

Nas doenças cardiovasculares

Se há consenso sobre tirar a H. pylori de cena diante desses problemas hematológicos, nos males cardiovasculares a história é outra. "Alguns estudos não acham uma relação desse micro-organismo com o infarto, nem com o AVC", reconheceu o professor Zaterka. "Em compensação, outros demonstraram isso com clareza. Em pacientes que sofriam de crises frequentes de angina, eliminar a bactéria diminuiu as idas ao hospital por causa da dor no peito", deu o exemplo.

Nas comparações dos achados de várias pesquisas que, somadas, contabilizavam mais de 17 mil, 20 mil pacientes, os cientistas perceberam que pessoas infectadas por essa bactéria corriam um risco até duas vezes maior de infartar ou ter um AVC.

"Já sabemos que a H. pylori libera substâncias que contribuem para o aparecimento de placas nas artérias. E também pode induzir um espessamento das carótidas, vasos que irrigam o cérebro", observou o professor. São possíveis explicações para o aumento da ameaça.

Por falar em cérebro...

Também há pistas de que a bactéria poderia alcançá-lo tanto pelos nervos do próprio trato gástrico quanto pelos nervos olfatórios. E, uma vez no sistema nervoso central, ela elevaria o risco de males neurodegenerativos.

"No caso do Alzheimer, na sua presença aumentam os níveis de uma proteína que é marcador para essa doença", contou Schlioma Zarterka. "Talvez isso explique por que existem dados de que a erradicação da Helicobacter seria capaz de desacelerar o avanço dessa demência."

Os estudos, enfim, fazem muita fumaça para a gente não desconfiar que a bactéria do estômago possa tocar fogo em outros cantos do corpo. Cabe à ciência, agora, digerir tantas suspeitas.