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Blog da Lúcia Helena

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Será que delta continuaria muito transmitida por gente que já foi vacinada?

Pixabay
Imagem: Pixabay

Colunista do VivaBem

25/08/2021 04h00

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Na última sexta-feira (20), um estudo da Johns Hopkins School of Medicine, nos Estados Unidos, deixou o recado para bons entendedores: a variante delta apresenta cargas virais bem, mas bem mais elevadas do que a variante alfa, o que os pesquisadores observaram depois de sequenciar 2.785 amostras de americanos com covid-19.

Mais: se delta dá um jeito de escapar da proteção da vacina, ela então se multiplica no sujeito que se achava livre de sua ameaça sem se sentir nem um pouco intimidada. Isso ficou claro porque, nas amostras, a carga viral nas alturas dessa variante foi parecida em vacinados e não vacinados que a contraíram.

Fazendo um paralelo: além de menos gente imunizada pegar alfa, quando acontece esse azar (porque sempre pode acontecer), essa outra cepa não costuma crescer assim tão à vontade em quem completou seu esquema vacinal.

Para coroar, os cientistas da Johns Hopkins também notaram nas amostras com delta níveis menores de marcadores de proteção, como determinados anticorpos que ajudariam a conter o vírus em uma região estratégica. E por que estratégia: por ser o trato respiratório superior. Em outras palavras, estamos falando do nariz, da nasofaringe atrás dele, dos seios paranasais e da laringe na garganta.

Portanto, com delta temos cargas virais cerca de 300 vezes maiores voando até você sempre que alguém contaminado — e, quem sabe, até vacinado — fala ou apenas solta o ar ao seu lado. Porque ela não encontra muitas barreiras nas vias aéreas superiores, de onde costuma ser expelida em gotículas microscópicas.

Não, não precisa ninguém com covid-19 tossir para isso acontecer. Aliás, até nisso delta é metida a ser diferente: poucos infectados tossem ou perdem a capacidade de sentir o cheiro das coisas, como acontece quando alguém contrai uma de suas antecessoras. A maioria dos que carregam a variante delta tem coriza e reclama de dor de cabeça ou de garganta — o que deixa fácil alguém, e aí sem má fé, confundir uma das maiores mazelas da humanidade com um reles resfriado.

A conclusão do artigo da Johns Hopkins é que "devem ser implementadas medidas para reduzir a transmissão, somadas a um aumento das taxas de vacinação, a fim de diminuir o avanço da variante delta."

Nas entrelinhas, nada de novo — ou nada do que as pessoas querem ouvir. Vacinas provavelmente não seguram sozinhas a onda de delta neste momento. Logo? Logo, não dá para esquecer a máscara, abandonar o distanciamento e, se necessário, voltar às restrições a encontros, festas e eventos, porque o conceito de aglomeração vai ser mais uma vez atualizado.

Delta pode virar o jogo contra nós?

Montar o quebra-cabeças proposto pela variante delta para saber o que será daqui em diante não é simples. A primeira coisa que precisamos ter na cabeça: a versão indiana do Sars-CoV 2 nunca escondeu que era veloz. Em dois meses, apenas, já representava 90% dos casos no Reino Unido, passando a perna na variante de lá, a alfa. Aliás, na corrida para conquistar o mundo, ela é de 30% a 60% mais transmissível do que as cepas adversárias.

Estima-se que, hoje, delta já tenha se espalhado por 129 países — sem contar outros 19 em que já suspeitam de sua aterrissagem — , sendo que em 71 deles ela seria o tipinho mais numeroso em circulação. E aqui, bem, a variante estrangeira pode fazer do Rio de Janeiro uma cidade sitiada.

"No Rio, em especial, delta está em franca expansão", comenta Fernando Spilki, professor da Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, e um dos maiores especialistas em vírus do país. "Mas provavelmente, veremos outros surtos pelo Brasil", lamenta informar.

Para o professor, é difícil prever o que a variante fará entre nós. "Ela, ao menos, não parece ser mais letal do que as outras. Nesse sentido, aliás, nenhuma cepa superou a nossa gama."

O fato é que não temos estudo comparando o que ocorre com quem tem a recém-chegada delta e com quem tem a velha inimiga gama, a qual ainda é a variante predominante nos brasileiros infectados."O que desconfiamos é que delta realmente seja excretada com facilidade por pessoas vacinadas", diz Spilki.

Por que essa variante é mais veloz

Todo vírus comete erros quando se replica sem parar dentro do nosso organismo. Como se trabalhasse às pressas, de vez em quando acontece de, no caso do Sars-CoV 2, na sequência de 30 mil letras do seu genoma, uma trocar de lugar com a outra, por exemplo. "O vírus, diga-se, tem capacidade para corrigir alguns desses erros", explica Spilki.

Se não acontece a correção, muitas vezes as cópias diferentes, com mutações erráticas, até desaparecem, porque — modo de dizer — nem funcionam direito. Outras vezes, porém, a mutação dá muito certo, conferindo ao vírus uma vantagem para seguir adiante. E ele não abandona o que dá certo. A tal mutação se fixa.

"Duas regiões da proteína 'S', aquela que o Sars-CoV 2 usa para nos infectar, chamam atenção", ensina Fernando Spilki. "Uma delas é chamada RDB, do inglês receptor binding domain. Ela é que se liga aos receptores das nossas células para o coronavírus entrar."

Foi aí que delta fez duas trocas de sucesso, levando adiante essas mutações, a L452R e a T478K. Só uma curiosidade sobre as siglas de mutações: a primeira letra é sempre a do aminoácido que foi deixado para trás. Na primeira mutação mencionada aqui, foi a lisina que caiu fora.

Já a última letra é a do aminoácido que ficou em seu lugar — no caso, "R" é para arginina. Entre as duas letras, o número 452 é o endereço exato, a posição onde se enxerga a substituição. O invólucro do Sars-CoV 2 tem mais de 1200 posições de aminoácidos para testar modificações do gênero.

"Ao se grudar melhor ao receptor celular graças a essa mudança, delta se torna bem mais ágil", nota o professor. Ou seja, passa a infectar mais células em um curto intervalo, porque não é como se não perdesse tempo na entrada.

"E, como se replica em cada uma delas, o resultado é que sua carga viral sobe na mesma velocidade e acaba sendo maior no organismo infectado", nota Spilki. Essa é a lógica por trás de uma enorme quantidade de vírus sendo expelida pela boca e pelo nariz. E por que isso acontece até em quem já foi vacinado? Aí, a explicação está em outras mutações.

Quando o vírus joga fora um pedaço do seu genoma

Se todos ficaram olhando demais para a área chamada RDB nos últimos tempos, quando menos se esperava algo aconteceu no outro lado, na ponta esquerda da proteína "S" da variante delta, conhecida como NTD, de N-terminal domain. Sem cerimônia, Delta jogou fora dois aminoácidos que estavam ali.

"É muito louco isso", exclama José Eduardo Levi, biólogo molecular e virologista à frente da área de pesquisa e desenvolvimento da rede Dasa. "Se a natureza colocou esses aminoácidos ali, por que o vírus começaria a eliminá-los? Isso, na certa, deveria lhe dar alguma vantagem ou teria sido corrigido."

Depois se viu, segundo Levi, que a automutilação de delta não foi à toa: os anticorpos, sejam os da vacina ou aqueles que surgem após uma infecção natural, se agarram aos aminoácidos da NTD. Ela é tremendamente antigênica, isto é, chama um bocado de atenção do nosso sistema imunológico.

Quando delta deleta aminoácidos e faz a troca de um outro que também estava nessas vizinhanças, ocupando a posição 19, os anticorpos que miravam essa região deixam de encaixar tão bem. E a variante pode escapar na cara deles.

"Em geral, se um vírus comente um erro e deleta um pedaço do seu genoma, ele sente a falta e se dá mal. Mas não foi o que aconteceu dessa vez", conta Spilki. Só quem sentiu a falta dos aminoácidos eliminados, parece, foram as nossas defesas.

E as vacinas nessa história?

O fato de os anticorpos não se encaixarem mais perfeitamente no sítio NTD da variante delta não quer dizer que ela se tona imbatível. Nem que as vacinas não estejam cumprindo um belíssimo papel diante dela.

"Até porque, os anticorpos também se ligam em outras regiões do invólucro do vírus", tranquiliza Fernando Spilki. "Sem contar que as vacinas estão mantendo a maioria das pessoas clinicamente bem, com menos pacientes evoluindo para estados graves."

Não está claro se a quantidade de Sars-CoV 2 no organismo está diretamente relacionada com a gravidade da doença, como ocorre com outros vírus, como o HIV da Aids. Tudo indica que não. "Na covid-19, uma pessoa pode carregar uma carga viral descomunal e nem sequer apresentar sintomas", diz Spilki.

"Mas uma coisa é certa: a carga viral alta está relacionada à maior capacidade de transmissão", alerta o virologista. E, de pessoa em pessoa, correndo solta, delta ainda encontrará gente mais vulnerável, que precisará de UTI por causa da infecção.

"Também. não sabemos se esse aumento no número de casos de covid-19 observado onde delta chega tem a ver com um escape vacinal dessa variante ou se os anticorpos de quem tomou a vacina nos primeiros meses já não estão oferecendo proteção suficiente. Talvez sejam as duas coisas", explica o virologista.

Enrascada. Ora, tomou a vacina primeiro justamente quem estava na ponta da fila por ser mais vulnerável, como idosos. Já quem tomou a vacina por último, agora acha que está livre de delta para lotar bares, praias, restaurantes e festas e esse é um enorme engano. E, se alguém acha que, depois da vacina, pode sair sem máscara e não colocar os outros em risco, com delta esse pode ser o pior dos equívocos.