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Blog da Lúcia Helena

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Um vírus que se torna mais transmissível provocaria menos mortes, ou não?

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

27/07/2021 04h00

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A ideia poderia ter saído da minha boca, repetindo o que ouvi muitas vezes no passado: um vírus que mata a criatura que ele infecta seria burro feito uma porta, porque acaba enterrado junto, sem ouvir o chamado da natureza para perpetuar a sua espécie.

Porém, ao aprender alguma coisa e se adaptar por meio mutações genéticas — acreditava eu —, ele iria no sentido oposto, desenvolvendo estratégias para contaminar um número maior de pessoas e estabelecer uma certa convivência pacífica com elas, como quem garante casa, comida e roupa lavada. Além de novas oportunidades para pegar mais gente, claro.

A primeira parte da história — a tendência de um agente infeccioso se tornar mais transmissível com o tempo — pode até ser verdadeira. Mas a segunda...

"Esse conceito de que quanto maior a transmissibilidade, menor a letalidade não passa de um mito", garante o biólogo molecular e virologista José Eduardo Levi, espanando as falas poeirentas que surgem por aí, especialmente quando nos referimos à Delta, a variante indiana do novo coronavírus, que já está entre nós.

Nos países europeus, em Israel e em outros lugares onde Delta se alastrou, o número de casos de covid-19, que já estava despencando, voltou a subir feito foguete. Delta parece bem mais rápida em passar de um sujeito para outro.

Mas como, apesar das multidões infectadas por ela, morreu menos gente, alguns retomam o papo furado de que, quanto mais depressa um vírus consegue fazer um grande número de vítimas, menos ele mata.

"Tanto isso não é verdade que existem agentes infecciosos altamente transmissíveis que são muito letais também", lembra Levi, que é professor do Instituto de Medicina Tropical da USP (Universidade de São Paulo) e líder da área de pesquisa e desenvolvimento da Dasa, uma das principais redes de saúde integrada do país

"O que pode ocorrer a longo prazo é que os indivíduos mais susceptíveis a um determinado agente infeccioso vão morrendo", explica. Ok, daí a ilusão é a de que aquele agente — vírus, bactéria ou o que for — se torna menos nocivo. Mas a realidade é que só sobrou gente mais apta a conviver com ele na face da Terra. E isso não acontece da noite para o dia.

"Pense na malária", faz um paralelo Levi. "Ela está infectando a espécie humana há milhares de anos. E o seu parasita continua sendo altamente letal, sobretudo para crianças e grávidas. Claro, hoje existem adultos que convivem melhor com essa doença por causa da resposta imune desenvolvida ao longo dos séculos, mas não são todos."

O virologista menciona uma série de outros exemplos: "O vírus do sarampo, que talvez seja o mais transmissível que a humanidade conhece até agora, mata sem dó, nem piedade. O vírus Ebola é mais um que se transmite com tremenda facilidade e é extremamente letal".

Na contrapartida, o vírus da catapora passa de uma pessoa para outra em um zás-trás, mas nem por isso ele costuma fazer vítimas fatais. Moral da história: não há regras. A capacidade de transmissão e o poder de fogo de um agente infeccioso para matar são duas coisas que não estão correlacionadas.

Por que o Sars-CoV 2 dá a impressão de ser diferente

O coronavírus da covid-19, no entanto, até deixa a sensação confusa de que existiria a relação entre esses dois conceitos. As mutações que aumentam a sua capacidade de invadir as células humanas — e que, portanto, aprimoram a sua transmissibilidade — também fazem com que, dentro do nosso organismo, a área infectada se expanda.

Pense: essas mutações aumentam a sua afinidade com o famoso receptor ECA 2, o qual funciona como sua porta de entrada nas células. Desse modo, é como se as destrancasse mais ligeiro, alastrando-se ainda mais velozmente pelo sistema respiratório. Por ali, cria mais e mais réplicas. Logo, a carga viral se eleva — o que é pior para quem adoeceu e pior, também, para quem está por perto, correndo o risco de contaminação.

E qual variante do coronavírus se transmite mais fácil?

Só tem um jeito de responder: comparando uma com outra. "A gente sabe que a Delta é mais transmissível do que a Alfa, a variante britânica, porque hoje ela domina os casos no Reino Unido", explica Levi. "E é a mesma situação nos Estados Unidos, um ambiente onde predominava a variante Alfa. Mas, agora, a Delta está se sobressaindo entre os americanos."

Logo, se fosse uma competição entre essas duas, ninguém teria dúvida sobre qual seria a vencedora na prova de transmissibilidade, sendo mais rápida para fazer novas vítimas: Delta ocuparia o topo do pódio.

Mas será que Delta mata mais ou mata menos?

Quando se trata de analisar o potencial para provocar mortes, porém, pode ser um erro seguir fazendo comparações entre variantes.

"Ora, a variante indiana está se espalhando no mundo em um momento diferente, com uma taxa de vacinação muito maior", lembra Levi. Ou seja, pelas aparências Delta está matando menos. Mas, provavelmente, não por ser menos letal e, sim, por bater com o nariz na porta ao encontrar mais gente imunizada pela frente.

José Eduardo Levi aproveita e avisa que devemos tomar cuidado ao interpretar números, como os dos relatórios do Public Health England. Ali, você enxerga a quantidade de casos de covid-19 entre os ingleses e quantos deles terminaram em morte.

Se bater os olhos, achará que essa variante, notoriamente mais transmissível, mata menos — ora, a taxa de letalidade de Delta mal chega a 0,1%, um nadica. "Mas isso porque quem está pegando Delta hoje em dia são os não vacinados", ensina Levi. "E, por sua vez, quando vamos checar quem são as pessoas que ainda não tomaram a vacina na Inglaterra, estamos falando principalmente de uma população abaixo dos 30, 40 anos."

Portanto, Delta está infectando gente mais jovem, que ainda espera sua vez na fila da vacina e que sempre foi mais resistente, morrendo menos ao pegar a covid-19.

"Já se você examinar apenas os indivíduos acima de 50 anos que contraíram essa variante, irá constatar que, nessa faixa etária, a taxa de letalidade sobe para os 2% de sempre." Logo, Delta mata do mesmíssimo jeito. Ela não é menos cruel só por ser mais transmissível, entende?

Variante indiana versus variante brasileira

Quando Delta aterrissou por aqui, José Eduardo Levi achou que ela não causaria dores de cabeça maiores do que as que já amargávamos até então.

Isso porque ela estava chegando em um ambiente dominado pela cepa da casa, Gama. E, pelas mutações que carregava, não parecia ter maior transmissibilidade do que o Sars-CoV 2 nascido em Manaus.

Os primeiros dados sobre sua presença no Brasil foram enviesados, diga-se. "Afinal, só buscaram saber se pessoas com covid-19 estavam infectadas por Delta quando elas relatavam, por exemplo, uma viagem para a Índia ou o contato direto com alguém de lá", conta o virologista. Nessas circunstâncias, natural esperar uma porcentagem mais alta.

No entanto, todos se surpreenderam com um estudo divulgado na semana passada. Ele sugere que Delta já representa 16% das novas infecções em diferentes municípios do Rio de Janeiro. Se for assim, a história mudará um pouco de figura.

"Mas continuo achando que essa variante não causará uma terceira onda no Brasil", aposta Levi. Para ele, melhor seria a gente ficar de olho em mutações capazes de turbinar a nossa variante Gama, a qual nunca foi bolinho. Fixe na mente: se por acaso ela se tornar ainda mais transmissível, nem por isso será menos letal.

O perigo de não completar a vacinação

Se aparecer uma Gama mais ardilosa, com mutações conquistadas por outras cepas em diferentes cantos do mundo, é mais provável que ela escape daquelas vacinas que, por aqui, já foram dadas em um grande número de pessoas — CoronaVac e AstraZeneca, no caso. "Não afirmo que isso irá acontecer, mas precisamos fazer uma vigilância entre os vacinados", defende Levi.

Esse perigo fica perto de se concretizar quando lembramos a quantidade enorme de pessoas que ainda não completaram o esquema vacinal, isto é, que não tomaram a segunda dose de um imunizante ou de outro.

Essa gente pode ser equiparada grosseiramente a quem, ao ser infectado por uma bactéria, não faz o tratamento com antibióticos até o final, como médico mandou. Então, os micróbios que sobram vivos são justamente aqueles mais resistentes ao remédio.

Do mesmo jeito, a vacinação incompleta dá a chance de um vírus aprender a driblar o imunizante. É o pior dos mundos. Porque, além de se tornar mais apto para passar de uma pessoa para outra, incrementando sua transmissibilidade, ele também não perderá tempo para escapar da vacina. Daí já viu a encrenca: esse vírus, rápido no gatilho, não será menos letal.