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Blog da Lúcia Helena

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Britânicos adiam desconfinamento: qual é a lição sobre variantes e vacinas

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Imagem: iStock

Colunista do VivaBem

18/06/2021 04h00

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Os britânicos que coloquem o seu saquinho de chá de molho na xícara: não será na próxima segunda-feira, como programado há meses, o tão aguardado Freedom Day, data em que as casas noturnas seriam reabertas, as salas de cinema e de espetáculos voltariam a funcionar com capacidade total e que as pessoas não teriam mais que se reunir apenas em pequeníssimos grupos.

A liberdade até acontecerá, ainda que mais tardia, como anunciou no início desta semana o primeiro-ministro Boris Johnson: ela será no dia 21 de julho, se nada atrapalhar seus planos. O que poderá adiar mais uma vez os brindes nos pubs será o resultado da corrida entre a segunda dose da vacina para boa parte da população e Delta, a cepa indiana do Sars-Cov 2.

Afinal, a variante é a responsável pelo número triplicado de casos de covid-19 entre os britânicos nas últimas três semanas. A Delta está por trás de 57% a 76% das novas infecções por lá. Vale a cautela.

"Depois de sofrer com a segunda onda, o Reino Unido se tornou um modelo na pandemia. As medidas do seu governo não só têm sido ágeis, como estão alinhadas com o que os cientistas recomendam para as autoridades", comenta o biólogo molecular e virologista José Eduardo Levi, que está à frente da área de pesquisa e desenvolvimento da Dasa, uma das principais redes de saúde integrada do nosso país.

As variantes e a eficácia das vacinas

Os britânicos não perderam tempo. Delta aterrissou em suas bandas e o PHE (Public Health England) logo encomendou um estudo, realizado entre 5 de abril e 16 de maio, para orientar toda e qualquer decisão, baseando-se inclusive na descoberta de até que ponto as duas vacinas aplicadas na população estavam funcionando pra valer contra a cepa recém-chegada.

Porque fique sabendo: quando a gente lê que um imunizante apresenta uma porcentagem qualquer de eficácia e se anima, considere que o estudo o qual levou a essa conclusão foi realizado em determinado lugar, onde por sua vez circulavam certos tipinhos do Sars-Cov 2 naquele período específico dos testes. Quando aparece uma variante nova no pedaço, porém, a história pode mudar. E, no caso, ela mudou. Basta olhar os resultados revelados pelo PHE.

Foram necessários quinze dias após a segunda dose para a vacina da Pfizer alcançar 88% de eficácia contra a Delta, enquanto contra a Alpha, a variante britânica que até então dominava o cenário do Reino Unido, ela atingia 93% de eficácia no mesmo intervalo de uma quinzena. São porcentagens altas e, mesmo hoje, a opção da Pfizer continua dando uma proteção excelente — mas note a queda do efeito em Alpha para o efeito em Delta.

Na mesma comparação, ou seja, esperando pacientemente 15 dias após a segunda dose, a vacina da AstraZeneca — a prata da casa, desenvolvida na Universidade de Oxford e que foi dada a dois terços dos adultos britânicos vacinados até o momento — provou ser 60% eficaz ao se deparar com a variante Delta, quando era 66% eficaz diante da Alpha. Ela também continua sendo uma boa vacina, mas repare que, como a da Pfizer, derrapou quando a cepa indiana ganhou território.

No entanto, a grande questão é outra. Não importa se a injeção foi da Pfizer ou da AstraZeneca/Oxford: ambas se mostraram apenas 33% eficazes contra Delta após 21 dias da primeiríssima dose. Em resumo, está claro que ela sozinha não segura a onda da cepa indiana.

Eis a razão do adiamento: 79% dos britânicos tomaram vacina contra a covid-19. Mas o número diminui para 56,6% da população quando você foca naqueles que já tomaram a segunda dose e que, portanto, completaram o esquema vacinal como manda a bula.

Ter um pouco mais da metade dos adultos protegidos contra Delta não está sendo o bastante para conter sua fúria. Daí que deixar o sonhado "dia da liberdade" lá para adiante é dar tempo para que chegue a vez de um maior número de pessoas levar a sua segunda picada.

Intervalo maior entre doses

Para criar a oportunidade de dar a primeira dose depressa a uma grande quantidade de indivíduos, os britânicos optaram, como nós, por estender o intervalo original de um mês para três meses entre as duas aplicações da vacina de Oxford. Fazia sentido.

Esse imunizante provou que podia oferecer até mais proteção no final do novo esquema e, passadas duas ou três semanas, a primeira dose alcançava perto de 70% de eficiência. Para agilizar a vacinação em uma pandemia, o intervalo maior parecia ótimo, sim.

"Mas essa boa notícia veio de estudos feitos em outro momento, quando não circulavam tantas variantes pelo planeta", observa o virologista Fernando Spilki, professor da Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul. "Com elas em cena, para você recuperar taxas de proteção similares às da primeira dose de antes, a segunda se torna mais do que essencial", avisa.

José Eduardo Levi, da Dasa, reforça: "As pessoas devem entender que, na covid-19, a segunda dose não é um mero complemento. Existem vacinas, como a da hepatite B, a qual é dada em três doses, em que a gente sabe que a última delas é quase um chantilly. Mas é bem diferente quando se trata da infecção pelo Sars-CoV 2. No caso, é preciso tomar a segunda dose ou nada feito — você poderá ser infectado, desenvolver doença grave e até morrer", deixa claro o cientista.

Se máscara, higienização das mãos e — como nos ensinam agora os britânicos — prolongar o distanciamento social são medidas duras, mas necessárias até o coronavírus deixar de transitar com facilidade entre nós, isso nem se discute se a pessoa ainda está na etapa inicial da imunização. Quem tomou a primeira dose deveria se comportar como quem não tomou dose alguma.

Números incomparáveis

"Desconfinamento" é um termo que soa até absurdo no Brasil. "A gente quer demais a flexibilização das normas de distanciamento e não considera nossas taxas baixíssimas de vacinação", analisa o professor Spilki.

Não é preciso ser bom de matemática para entender o seu ponto: até o dia de hoje, 28,8% dos brasileiros tomaram a primeira dose da vacina contra a covid-19 e só 11,4% receberam a segunda.

Os britânicos, mesmo com muito mais gente imunizada, vêem os casos de covid-19 aumentarem em função de uma variante e sabiamente recuam. Aqui, queremos andar na contramão quando, no quesito variante, a verde-e-amarela Gama — a tal de Manaus ou P1 — talvez bote a indiana no chinelo.

A cepa de lá e a cepa daqui

"Para cada 100 casos, a variante indiana Delta produz outros 160", ensina o professor Spilki. "Ou seja, ela tem uma transmissibilidade parecida com a da variante Gama brasileira."

A gente, então, é que brinca com fogo. A Delta indiana já colocou os vietnamitas trancafiados de novo em casa. "Também é responsável pelas novas infecções em Cingapura, uma alta de casos nunca vista por lá", nota José Eduardo Levi.

Mas o estrago no Reino Unido pode ter ocorrido não só por ela ser mais transmissível, especula o cientista da Dasa: "Quando a Delta surgiu por lá, entre 30% e 40% dos adultos estavam vacinados e mais protegidos contra a variante Alpha. Daí, como o resultado da primeira dose é pífio para a Delta, ela encontrou o caminho livre de Alpha para avançar".

A Delta provavelmente só não ganhou muito espaço no Brasil porque há pessoas pelas ruas transmitindo descontroladamente a variante P1 ou Gama. E, nessa sopa de letras gregas, diferentemente da Alpha dos britânicos, a nossa Gama é páreo à Delta indiana, deixando-a mais acuada.

A cepa indiana tem mutações que até foram encontradas antes em outras variantes do Sars-CoV 2. Mas duas, na famosa proteína spike, parecem ser exclusivas. "Uma delas, além de possibilitar maior transmissibilidade, favorece que o vírus escape dos anticorpos de quem já teve a doença ou foi vacinado", diz Fernando Spilki.

Outra de nossas desvantagens

Se os britânicos têm ciência de que as vacinas não os defendem tão bem da Delta na primeira dose, pouquíssimo se conhece sobre a capacidade de qualquer imunizante contra a nossa variante na primeira picada. Noção quase zero. É a verdade crua.

A própria imunidade de quem teve a covid-19 é duvidosa. "Quando a Gama tomou conta de Manaus, uns 30% dos casos eram reinfecções", recorda José Eduardo Levi.

Pergunto a Fernando Spilki qual exemplo devemos tirar do Reino Unido. "Não deixe um vírus trilhar o caminho que ele quer", responde na lata. Mas, com tantos brasileiros achando que a primeira dose da vacina é passaporte para a vida de antes, o coronavírus perambulará à vontade e não dará o nosso dia de liberdade tão cedo.