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Blog da Lúcia Helena

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Por que os sintomas do infarto na mulher são tão diferentes do que no homem

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

15/06/2021 04h00

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Nos Estados Unidos, uma em cada três mulheres morre de um ataque no coração. Por aqui, ainda não existe uma estatística assim tão precisa, mas se acredita que seja mais ou menos a mesma coisa: no final das contas, o infarto leva embora mais mulheres do que o câncer de mama. Aliás, cá entre nós, ele mata mais mulheres do que a soma de todos os tumores malignos. Mas quem tem consciência disso, prestando atenção aos sinais do peito?

De acordo com a cardiologista Dipti Itchhaporia, presidente do American College of Cardiology, esse é o ponto mais preocupante: ainda são poucas as mulheres que fazem ideia de que essa é uma ameaça tão comum. Um número menor ainda sabe que, nelas, o inimigo é sorrateiro porque costuma aparecer de uma forma diferente da dos homens. Sem notá-lo, buscam ajuda tarde demais. Mesmo quando sobrevivem, um terço fica com sequelas por causa dessa perda de tempo.

Em 70% dos casos, o coração feminino sofre o infarto sem sentir nada daquilo que a gente sempre ouviu falar: a dor aguda e insuportável no peito e o formigamento no braço, por exemplo. Guarde bem: mulher tende a infartar reclamando de embrulho no estômago, talvez incomodada por um baita aperto no peito ou, quem sabe, sentindo um cansaço esquisito e uma dorzinha chata nas costas.

Ora, se as diferenças ficassem por aqui, o flagrante já seria bem complicado. Mas tem mais. No pronto-socorro, os exames também terão uma cara diferente daquela ensinada nos livros de Medicina. Então, se duvidar, a paciente volta para a casa. Infartando.

A doutora Itchhaporia contou tudo isso ao participar do painel dedicado à saúde cardiovascular feminina no congresso da Socesp (Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo), que terminou no último sábado, dia 12. E, ali, ela deu a entender que, apesar de todos os esforços, a situação pode estar até pior hoje em dia.

Primeiro porque, de acordo com um estudo publicado há poucas semanas no periódico científico The Lancet, a conscientização das mulheres a respeito das doenças cardiovasculares andou em marcha à ré nos últimos dez anos: se, antes, uns 60% tinham noção do perigo, agora é menos da metade ou, precisamente, 43%. Veja, o dado é americano, mas...

Além disso, contou a doutora Itchhaporia em sua aula, o cenário é pior porque o infarto vem acontecendo mais cedo no público feminino. "Mais cedo, quando se trata de mulheres, seria na faixa dos 50 anos", esclarece a cardiologista Lília Nigro Maia, professora da FAMERP (Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto), no interior paulista, que coordenou justamente o painel do congresso sobre o coração das mulheres.

"Se a mulher que chega no hospital relatando sintomas atípicos e se ainda por cima é jovem, aí mesmo é que muitas vezes ninguém vai cogitar ser um infarto", lamenta a médica.

A placa dos homens versus a placa das mulheres

A famigerada placa nas artérias é o ponto de partida da cadeia de eventos que culminará na obstrução das coronárias, vasos encarregados de abastecer de sangue o próprio músculo cardíaco. E começa por aí: "A placa tem uma constituição diferente no homem e na mulher", ensina a professora Lília.

Nas artérias femininas, predominam placas que não são tão ricas em LDL, aquele que é apelidado pelo povo de colesterol ruim. Elas, no caso, são formadas principalmente por outro tipo de molécula, os triglicérides, e também são menos inflamadas. Mas são mais erosivas, como se se soltassem aos poucos — "em questão de algumas horas, não de dias", esclarece a cardiologista.

Já nas artérias masculinas, a placa, bastante inflamada e cheia de LDL, se rompe feito um vulcão. "Por isso, imagine um homem sentado tranquilamente, com uma placa obstruindo apenas 30% do seu vaso sanguíneo, a qual ele ignora porque nunca sentiu nada", descreve a professora. "No instante seguinte, porém, essa placa se rompe e, daí, começa a se formar um trombo, ou um coágulo, capaz de interromper a circulação no coração. Dali a 5 minutos, pode até ser que esse homem caia fulminado no chão."

Nas palavras da médica, quando a placa se rompe, é tudo tão repentino que se torna dramático — e isso é bem mais frequente na ala masculina. "Na mulher, por ser na maioria das vezes um processo erosivo, ele é um pouco mais demorado", conta. "Por isso, também, é que os sintomas não são aqueles característicos."

Ou seja, na mulher não há nada passando a entupir a coronária do nada, fazendo o peito se contorcer de dor. Mas não deixa de ser outro drama, uma vez que os sintomas da erosão de uma placa não são reconhecidos com facilidade.

Um dado espantoso que aprendi no congresso da Socesp: os primeiros estudos sobre infarto envolvendo participantes mulheres foram realizados apenas nos anos 1980. Até lá, éramos tratadas feito homens. Não podia dar certo. Aliás, não está dando.

O eletro dos homens versus o eletro das mulheres

A própria mulher demora para buscar ajuda, em um misto de ignorância — a respeito dos sinais ou da possibilidade de infartar antes de ser uma senhora na menopausa — e de fatores culturais mesmo. A gente foi pessimamente criada para tolerar o mal-estar. "A mulher que está infartando acha que comeu algo que lhe fez mal ou lembra que carregou peso no dia anterior ", nota a professora Lília.

Mesmo quando ela se dá conta de que não está sentindo algo normal, o primeiríssimo exame feito no pronto-socorro poderá negar o que cala em seu peito: o eletrocardiograma não terá aquele traçado claro de um infarto.

"Quando a coronária se fecha e deixa de mandar sangue para o músculo cardíaco, o que acontece primeiro são alterações metabólicas nas células do coração", explica a cardiologista. Mas lembre-se: a coronária se fechar de um instante para outro tem mais a ver com os homens."Nessa etapa, as células do coração ainda estão vivas. E o traçado do eletrocardiograma em determinado segmento está lá embaixo. Para nós, isso é um sinal de que a coronária não está completamente fechada ou de que ela não se fechou há muito tempo", descreve a médica.

Só que logo começam os danos nas estruturas das células cardíacas. Elas vão perdendo potássio, por exemplo, até morrerem. "São lesões que, diferentemente do que ocorre na primeira etapa, você até poderia enxergar pelo microscópio", conta a médica. "Um traçado do eletro que sobe dá uma pista de que isso está ocrrendo. É o que nós chamamos de supra".

Supra no eletrocardiograma?! Não tem o que se discutir: é para correr com o homem na maca até o centro de hemodinâmica a fim de desobstruir voando a artéria bloqueada pelo trombo. Ou lhe injetar remédios que segurem as pontas, dissolvendo o coágulo, só para ganhar tempo e conduzir o paciente até um hospital capaz de fazer a angioplastia ou uma cirurgia.

Na mulher infartando, porém, o eletro nem sempre tem supra, ora, ora... "Ou, se tem supra, ele é pequeno e logo desaparece. Ao lado dos tais sintomas atípicos, nada se encaixa direito no jeito como a gente aprendeu a fazer diagnósticos", diz a médica. Aliás, vale notar que, há pelo menos quinze anos, existem dados sobre esse jeito de infartar, digamos, tão feminino. Mas, na prática do pronto-atendimento de muitos lugares, pouca coisa mudou.

Existe ainda o fenômeno que os cardiologistas chamam de MINOCA (sigla de myocardial infarction and nonobstrutive coronary). Ele também é mais comum na mulher: a paciente, no caso, pode até apresentar um quadro com toda a cara de infarto, com marcadores no sangue indicando a necrose do músculo cardíaco que ficou sem sangue e tudo mais "Só que, ao mesmo tempo, o exame do cateterismo não encontra nada para explicar tudo aquilo", diz a professora. "Isso porque a maioria desses episódios acontece por causa de um espasmo: a artéria se fechou completamente e, na sequência, voltou a se abrir."

Enfim, tudo no coração feminino que infarta pode levar a confusões fatais. Para não ficar com o peito tão angustiado, além de reforçar a prevenção — evitando um colesterol e uma pressão nas alturas e tendo um cardiologista para chamar de seu —, a mulher nunca deveria subestimar um mal-estar, para início de prosa.

E, ao senti-lo, sempre lembrando que um embrulho no estômago e uma dor nas costas podem significar algo mais complicado, ela deveria agir como um menino: gritar por socorro, de preferência em um hospital com serviço de cardiologia, onde ao menos há uma bela chance de alguém saber que o coração feminino merece um olhar diferenciado.