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Blog da Lúcia Helena

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

O novo jeito de tratar o câncer de esôfago dá esperança para outros tumores

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

10/06/2021 04h00

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Todo câncer ludibria o nosso sistema imunológico. Sem fazer trapaça, não iria em frente, porque nossas defesas acabariam fácil com a sua graça. Acostumadas a varrer do organismo tudo o que é estranho, vivem fazendo pontos de verificação ou checagem para deter qualquer coisa esquisita. Mas, aí é que está, as células malignas dão um jeito de escapar dessa inspeção.

É como se elas carregassem uma identidade falsa —proteínas em sua superfície que só os tecidos sadios costumam ter. E, desse jeito, enganam a blitz imunológica, mostrando que pertencem de fato àquele corpo e que, portanto, é muito justo estarem ali. Então, são liberadas —e o tumor formado por elas ganha um passe livre para crescer.

Aos poucos, porém, isso começa mudar: a ciência está abrindo os olhos do sistema imunológico. Há quem diga que, no futuro, sete em cada dez tipos de câncer será combatido assim, com a imunoterapia aumentando flagrantes e mostrando quem é maligno tentando se passar por benigno naquele pontos de verificação.

Foi o que se viu, aliás, pelos bons resultados desse tratamento no câncer de esôfago, apresentados no ASCO Annual Meeting, o encontro da Sociedade Americana de Oncologia Clínica, que terminou anteontem, dia 8.

É mesmo para chamar a atenção. No Brasil, o câncer de esôfago é o 6º mais frequente nos homens, se a gente descontar os tumores de pele que não sejam melanoma. E é o 15º mais comum em mulheres, de acordo com o Inca (Instituto Nacional do Câncer).

No mundo inteiro, é o 8º câncer mais frequente. "E, no entanto, mesmo fazendo todo o tratamento como manda o figurino, nem metade dos pacientes termina curada", informa o oncologista Gustavo Fernandes, diretor-geral do Hospital Sírio-Libanês, em Brasília.

Sempre aguardadíssimo por ser o maior evento sobre câncer do planeta, neste ano em versão on-line o encontro da ASCO exibiu um terço a menos de trabalhos do que de costume. "Afinal, a produção científica que não seja na área da covid-19 também anda baqueada pela pandemia", nota Gustavo Fernandes. "Ainda assim, o encontro trouxe dados incríveis, com enorme destaque para a imunoterapia."

O Sírio-Libanês está envolvido em um estudo realizado em diversos centros do mundo, o qual foi apresentado no evento. O hospital recrutou brasileiros com câncer de esôfago para testar o tratamento com um imunoterápico chamado nivolumabe, depois que já tinham passado por químio e radioterapia, além de cirurgia.

"A recorrência da doença, então, caiu de 39% para 29%", conta o oncologista. "A imunoterapia, no final das contas, evitou que esse câncer reaparecesse em um de cada 10 pacientes em estágios mais avançados da doença."

Pode parecer uma diferença discreta, mas saiba que, ao ficarem espertas e controlarem a situação, as células de defesa fizeram com que, mesmo naqueles casos em que a doença voltou, isso levasse muito mais tempo para acontecer. "Prolongou a vida e, melhor, deu mais qualidade a essa vida", frisa o médico.

O esôfago, esse desvalorizado

Abrigado basicamente no tórax —a entrada dele fica no finalzinho da garganta e, em raríssimas pessoas, pode se estender um pouco mais, alcançando o abdome—, o esôfago é sempre citado como o tubo por onde escorrega toda a comida e a bebida que engolimos até caírem no estômago. Não é justo.

"Ele tem peristaltismo", lembra Gustavo Fernandes. "Isso significa que faz movimentos para levar o que engolimos na direção certa, sem voltar. Faz um carreamento, eu diria, profissional. Prova disso é que você conseguiria comer de cabeça para baixo."

O oncologista nos faz pensar: se fosse um tubo passivo apenas, que não fizesse coisa alguma a não ser uma ligação, seria moleza resolver um câncer localizado bem ali. "Bastaria trocá-lo por uma prótese e fim de caso", diz ele. Mas não dá.

Às vezes —muito raramente, para ser precisa—, quando um câncer está bem no finalzinho, quase no ponto onde esse órgão desemboca no estômago, os cirurgiões cortam só essa parte e tentam reconstruí-lo com uma porção do intestino. Mas não seria forçar a barra afirmar que o esôfago é quase insubstituível.

A verdade é que a gente só se lembra dele se não realiza sua tarefa direito — quando a comida volta do estômago e inferniza a vida do cidadão. "O ambiente estomacal é hostil, com o pH muito baixo, ácido e repleto de enzimas digestórias", diz o médico. "A acidez e essas enzimas, quando sobem, podem até arrebentar com as cordas vocais."

E, claro, arrasam todo o trajeto também. Leia, o próprio esôfago. Para a maioria das pessoas que penam com o tal refluxo esofágico, essa é apenas uma situação dolorosa, ardida, que as obriga muitas vezes a dormir quase sentadas para evitar que o conteúdo estomacal pegue a contramão na madrugada. Para uns poucos, porém, tanta azia termina em problema. Quero dizer, em câncer.

O elo com a obesidade

Um dos dois tipos de câncer de esôfago, o adenocarcinoma, se torna mais e mais frequente na medida em que os ponteiros da balança sobem. "Fácil entender: a obesidade provoca uma pressão intra-abdominal e, aí, a válvula entre o esôfago e o estômago pode acabar rompida", descreve o doutor Fernandes.

A doença do refluxo, então, irá inflamar as paredes do órgão. Para a grande maioria dos pacientes, repito, isso não vai passar de um incêndio doloroso. No entanto, se for constante, poderá danificar as glândulas nas paredes do esôfago, encarregadas de lubrificá-lo e protegê-lo — e o adenocarcinoma começa por elas. "Geralmente, é um tumor que dá as caras no terço inferior do esôfago, até pela proximidade com o estômago", descreve o oncologista.

Sintomas suspeitos

A velha azia, portanto, além de chata, é para ser levada a sério, o que significa buscar um médico, de preferência um especialista em aparelho digestivo.

"As pessoas devem se preocupar especialmente se o sintoma de sempre se modifica", explica Gustavo Fernandes."Quando alguém sentia queimação só quando comia algo mais pesado e passa a senti-la duas ou três vezes por semana. Quando a ardência já conhecida começa a surgir acompanhada de tosse e por aí vai", exemplifica.

Outro sintoma — este mais comum no segundo tipo de câncer de esôfago, o de células escamosas — é a dificuldade para engolir. Respeite essa sensação e procure ajuda.

Quando cigarro e álcool estão por trás

Só o fato de um indivíduo fumar ou beber muito já aumenta em cerca de 30 vezes o risco de ele ter um câncer de células escamosas no esôfago. "São células que se parecem mesmo com escamas. Elas surgem tentando recobrir uma área da mucosa que está sendo muito agredida", descreve o oncologista. E, diga-se, a fumaça do cigarro agride de montão.

Como, pelo aparelho digestivo, as tragadas não vão longe — pelos pulmões, a história é outra —, esse é o tipo de tumor que costuma aparecer da metade para cima do esôfago, ou seja, até onde a fumaceira desce. E vale alertar: pior do que só fumar ou só beber é beber e fumar. Essa dupla de botequim das antigas é a maior inimiga do esôfago.

O tumor de células escamosas ainda representa mais de 90% dos casos de câncer nesse órgão. "Mas a tendência é cair, ao menos nos cantos do mundo onde as pessoas estão apagando o cigarro", observa Gustavo Fernandes. Já o adenocarcinoma aumenta e as estatísticas globais de obesidade deixam claro o motivo.

E os outros cânceres com isso?!

Se os médicos diagnosticam um tumor localizado no esôfago, eles primeiro combinam radioterapia e quimioterapia em doses baixas. "Depois, é feita a esofagotomia total", conta o doutor Fernandes. Traduzindo, não tem jeito: o esôfago é retirado inteiro. Na sequência, os cirurgiões esticam e puxam o estômago para o alto, fazer o quê! "Só não se faz essa cirurgia quando o paciente não tem condições físicas para encará-la", diz Gustavo Fernandes.

Agora, a imunoterapia soma forças. Também na ASCO, foi apresentado um estudo chinês que comparou 648 pacientes com tumor de esôfago. Uma parte fez quimioterapia e imunoterapia antes de ser operada. Outra parte fez só químio e uma terceira, só imuno.

O sucesso desta última opção, bem menos agressiva, foi o mesmo do das drogas quimioterápicas. Isso dá esperança de que, com o tempo, elas sejam substituídas pelas nossas próprias células de defesa no tratamento de vários tumores. Basta ensiná-las a reconhecer o que é maligno, como faz a imunoterapia nos casos de esôfago. Daí, elas poderão ter plenas condições de mandá-lo às favas.