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Blog da Lúcia Helena

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Variantes, coinfecção... Respostas para dúvidas sobre a evolução do vírus

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

09/03/2021 04h00

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E o adjetivo "novo", que durante o último ano apareceu colado ao nome coronavírus para designar o Sars-CoV 2, agora vive acompanhando a expressão " "vírus variante". A gente escuta falar da tal nova variante britânica. Sabe que tem, também, a nova variante sul-africana. E, diante de tanta novidade, chega a sentir um alívio danado quando lê que essa ou aquela vacina pode funcionar contra o raio da variante de Manaus.

Para completar, como se fosse pouca bobagem lidar com um inimigo que ameaça mudar de disfarce ou conquistar novas competências, cientistas da Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, divulgaram em janeiro um estudo apontando casos de coinfecção, quando uma pessoa pega mais de uma linhagem do Sars-Cov 2 ao mesmo tempo. Mas — opa! — linhagem não é variante. Fica cada vez mais confuso acompanhar essa história.

A fim entendê-la, corri atrás do veterinário Fernando Spilki, o professor da Feevale à frente do trabalho sobre a coinfecção. Doutor em biologia molecular, ele representa virologistas de boa cepa que o Rio Grande do Sul produz desde os anos 1940, em função da economia do estado apostar na criação de animais. Portanto, por lá, muitos especialistas nessa área têm formação em veterinária, como ele.

"Mas, na virologia, o que interessa mais é o próprio vírus, independentemente de qual seja o hospedeiro", afirma. Diga-se, para investigar o Sars-CoV 2, a experiência com bichos traz seus ensinamentos. "Ora, a ciência tem quase 60 anos de estudos com coronavírus que infectam galinhas, causando bronquite nas aves", exemplifica. "E, todo ano, vacinamos bilhões delas."

Não, ele está longe de nos comparar a galináceos. Mas tira daí a lição de fazer o que chama de vigilância genômica. Ou seja, ficar de olho no material genético do coronavírus e se preparar para suas mudanças. Que, na evolução natural, são inevitáveis. Mas elas podem ocorrer em ritmo acelerado quando temos bilhões de galinhas. Ou milhões de seres humanos — sem vacina, sem máscara, sem cuidados básicos em uma pandemia.

Se eu pegar dois vírus ao mesmo tempo, vou ter uma doença mais grave?

Fernando Spilki explica que coinfecções não são raras quando se tratam de vírus. Foi assim quando dois tipinhos influenza de linhagens diferentes infectaram alguns porcos, trocaram informações genéticas e deu no que deu — a gripe suína. "Os rotavírus, então, fazem isso com muita frequência", conta o professor.

Mas, sim, há casos em que pegar duas linhagens de um vírus ao mesmo tempo pode significar uma infecção mais complicada. "Isso ficou bem conhecido em quem tem o HIV", lembra o professor. "Daí que casais formados por duas pessoas soropositivas devem usar preservativos nas relações sexuais, para evitar que a linhagem do HIV de um passe para o outro"

No entanto, no estudo realizado na Feevale, os pacientes com coinfecção do Sars-CoV 2 tiveram quadros leves e moderados, sem nenhuma manifestação clínica muito diferente daquelas observadas em indivíduos infectados por uma única linhagem do vírus.

"Pode ser coincidência", reconhece o virologista. "Afinal, essas coinfecções apareceram em participantes jovens. Amanhã ou depois, talvez alguém descubra que ser infectado por duas linhagens resultaria em quadros severos. O que posso dizer é que, nas viroses respiratórias, as coinfecções não costumam levar a um agravamento. Nosso medo tem muito mais a ver com os genes. Ou melhor, com os vírus recombinantes."

Vírus recombinante é diferente de vírus mutante?

"O grande desafio de um vírus é sobrepujar a imunidade prévia", ensina Fernando Spilki. Desse modo, o novo coronavírus infecta Pedro e é como se, dentro do seu organismo, para driblar o sistema imunológico, ele usasse determinada habilidade, a qual leva adiante ao infectar José. Em José, essa habilidade pode ser reforçada e, em Maria, mais ainda.

Isso costuma acontecer sempre em determinado ritmo. Em uma pandemia, porém, a coisa muda de figura. Quando há muitos José, muitos Pedro e muitas Maria, com milhares de contaminações ocorrendo simultaneamente, pode chegar mais depressa a hora em que ocorre uma mutação nos genes, perpetuando a estratégia de sucesso. Afinal, cada indivíduo infectado — que cresceu de um jeito, vive de outro modo, tem idade diferente, características diversas — é uma oportunidade única para o vírus. De treinamento e de mudança.

Na coinfecção, porém, não é o vírus aprendendo com o seu organismo, mas trocando informações sobre aquilo que já aprendeu com o genoma de outro vírus. Esse networking é terrível. "Não só pode implicar no surgimento de uma quantidade maior de variantes, como elas costumam aparecer bem mais depressa desse jeito", avisa o virologista.

Além disso, a troca de dados entre dois vírus aumenta a probabilidade de a gente encarar tipos mais nefastos. "Imagine um coronavírus que, de tanto ser transmitido de uma pessoa para outra, adquiriu uma mutação na proteína spike que faz com que seja transmitido com muita eficiência", propõe o professor Spilki. "Agora, pense que ele encontra outro coronavírus que não consegue ser transmitido com tanta facilidade, mas que sofreu uma mutação no seu gene capaz de induzir quadros graves de covid-19", continua.

Junta a fome com a vontade de comer: um passa para o genoma do outro a competência adquirida e, desse casamento, surge um Sars-Cov 2 que se espalha mais depressa e é mais virulento. Em resumo, coinfecções abrem as portas para mais variantes, que surgem mais ligeiro e que podem ser bem piores. O vírus evolui.

Como é a evolução de um vírus?

"Não há um consenso. Muda de livro para livro", responde, rindo, Fernando Spilki. Mas, na árvore genealógica do Sars-CoV 2, as linhagens seriam seus galhos. "Elas têm uma boa parte dos seus genes que não muda, como se estivesse fixada", define o professor.

Desses galhos saem ramos — as variantes — que têm porções mínimas de DNA diferentes entre si, mas com o resto do genoma igual. Preciso dizer: acontece de uma variante ganhar importância, até pelo número de pessoas infectadas por ela, e acabar sendo considerada um novo galho ou uma linhagem.

O fato é que, hoje, equipes que trabalham com vigilância genômica já registram mais de 100 linhagens do Sars-CoV 2 e cinquenta variantes. Ah, sim, deve existir um número muito maior de variantes. "E só países muito pequenos ou ilhas conseguiram mapear todas aquelas encontradas em seu território", conta.

Se são 50 variantes, por que a gente só fala da britânica, da sul-africana e da brasileira?

Variantes como a da Califórnia —que talvez seja um exemplo bem acabado de vírus recombinante — e a de Nova York não ganharam a mesma fama do que essas três, que parecem tocar o terror.

"Esse trio tem tudo o que nos preocupa", justifica Fernando Spilki. "Não só já infectou um grande número de pessoas, como tem uma, duas ou três mutações bem na proteína spike, o que pode contribuir para a transmissibilidade", começa a listar. "As três apresentam, ainda, alterações em proteínas não estruturais que podem aumentar sua capacidade de replicação."

Ou seja, essas variantes são capazes de passar de um sujeito para outro em um pulinho e, de quebra, ganham ligeiro o território em seu organismo. Por fim, existe outro ponto que, por enquanto, é especulação: será que outras alterações genéticas observadas nesse trio não produziriam uma doença mais grave? Ninguém afirma que sim. Mas é uma suspeita.

Como escapar dessas novas variantes?

Vacinação em massa em uma velocidade que não seja de tartaruga — ponto. Porque o Sars-CoV 2 acelera o passo. E, aliás, não importa que ocorram pequenas perdas de eficácia dos imunizantes para novas variantes. "O que interessa é diminuir a circulação do vírus para que mais e mais variantes não tenham a oportunidade de aparecer", esclarece Fernando Spilki. "Diga-se, nenhum gestor pode dizer que foi pego de surpresa por uma variante dessas, quando a situação já estava ficando sob controle. Sem vacinação, novas ondas sempre foram a única certeza. Mas esperamos que arrombassem a casa para colocarmos a fechadura."

Será que aguardar a imunidade de rebanho faz sentido?

"Não faz o menor sentido", comenta o virologista. "O organismo até poderá adquirir imunidade para uma linhagem, vamos supor. Mas, justamente pelo fato de que, para chegar a esse ponto, o vírus terá de infectar um grande número de indivíduos, aparecerão mais variantes e a população estará sempre voltando à estaca zero."

Há quem diga até que, no ritmo lento da vacinação no país, seremos o celeiro mundial de novas variantes. "Não acho exagero. Só penso que não seremos os únicos. Os Estados Unidos, por exemplo, também correm esse risco", opina Spilki.

Como será se a maioria de nós estiver vacinada até o final do ano?

Ainda assim, segundo o professor, o risco de novas variantes — leia-se, de novas ondas de covid-19 — só cairá se conseguirmos manter por um bom tempo em 2022 o uso de máscara, o distanciamento social e as medidas de higiene. "Passaremos um período em que teremos de reaprender a andar. Não adianta querer correr, direto, uma maratona", compara.

Se isso não for feito, diz ele, depois daquele Natal em família e daquela festa de Ano Novo, uma nova variante poderá se espalhar e nada terá fim. Já assistimos a esse filme. Ou melhor, ele ainda está passando e não sabemos se irá terminar bem.