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Blog da Lúcia Helena

Cospe aqui! A saliva que pode dizer se alguém está com a covid-19

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

01/12/2020 04h00

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Feita 99,5% de água, de uma enzima que começa a digestão de certos nutrientes mal eles são abocanhados, de moléculas antimicrobianas, de alguns minerais e mais pequeníssimas doses de outros componentes — ah, e isso sem contar o ar, que a faz espumar —, a saliva vive sendo derramada por três pares de glândulas maiores, que são as parótidas, as submandibulares e as sublinguais.

Mas essa meia-dúzia aí, se duvidar, não é mais importante do que o conjunto de inúmeras glândulas minúsculas, também secretoras desse fluido, espalhadas praticamente por tudo o quanto é canto da mucosa bucal. E vou lhe contar algo que faz qualquer um engolir seco: em exames de pessoas que, infelizmente, partiram deste mundo por conta da covid-19, não é que o vírus causador da doença também foi encontrado nas glândulas salivares?

Aliás, vou lhe contar mais: quando você cospe, não lança apenas um jato de saliva para fora. "O cuspe é, na realidade, uma mistura", me ensinou Paulo Henrique Braz-Silva, professor da disciplina de Patologia do Departamento de Estomatologia da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo e pesquisador do Laboratório de Virologia do Instituto de Medicina Tropical da mesma universidade. Eu o apresentaria contando que ele é um investigador de tudo aquilo que uma cusparada pode revelar — de infecções a disfunções do organismo.

"O cuspe tem aquilo que conhecemos como saliva, mas junta a essa receita clássica o fluido que banha o tecido periodontal, entre os dentes e os ossos, e ainda secreções vindas do aparelho respiratório", completa a explicação.

Ele próprio, em um dos projetos de pesquisa nos quais está envolvido, já encontrou o Sars-CoV 2 nos benditos tecidos periondontais de pacientes que morreram de covid-19. E lógico que esse vírus também está nas secreções nasais, algo que todo mundo está careca de saber, até por causar uma infecção respiratória.

Então, para começo de conversa, se o novo coronavírus está nas áreas que produzem os ingredientes do cuspe, por que esse líquido não seria capaz de dedurar a presença do invasor no organismo? E aí que está: ele é.

Vale abrir parênteses para registrar que exatamente hoje — 1.º de dezembro — a mesma USP lança um teste de saliva para apontar quem está neste instante com o novo coronavírus. Ele foi desenvolvido pelo Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL). Passa a ser oferecido a moradores da capital paulista que se dispuserem a ir até o local, na USP, depois do preenchimento de um cadastro, ou que fizerem a autocoleta, pagando um pouco mais por isso, até porque aí é preciso bancar o serviço de retirada do material. Os resultados do teste de saliva da USP saem em 24 horas e a técnica molecular — no fundo parecida com a do RT-PCR, o qual segue sendo o exame padrão-ouro—se chama RT-LAMP.

Nos Estados Unidos, para você ter ideia, já existem cinco testes de saliva autorizados pelo FDA (Food and Drug Administration) para, em uso emergencial, flagrar o Sars-CoV 2 pelo cuspe. Um deles, diga-se, experimentado com muito sucesso por pesquisadores da Universidade de Yale.

Por estes dias, além do exame lançado pelo CEGH-CEL, na mesma USP Paulo Braz-Silva e seus colegas da Faculdade de Odontologia publicaram uma baita revisão sobre a eficácia dos exames de saliva para diagnosticar a covid-19 em crianças. Faz sentido apelar para eles, ainda mais pensando em reabertura de escolas: não se pode comparar cuspir em um pote com um swab fino e comprido se intrometendo pelo nariz até alcançar uma área funda, razoavelmente distante das narinas, a famosa nasofaringe."De fato, a aceitação de um exame realizado pela saliva tende a ser muito maior pela criançada", observa o professor. Olha, eu diria que por pessoas de qualquer idade.

O que sai da boca do homem

"Podemos descobrir uma série de informações sobre qualquer indivíduo pelo seu cuspe", garante o professor Braz-Silva, que investiga essa possibilidade há mais de 20 anos. "Esse fluido carrega substâncias que são marcadores, isto é, que revelam o nosso estado de saúde. Estou falando de proteínas, lipídeos, açúcares, enfim, de moléculas que são produtos do nosso metabolismo e até mesmo rastros de agentes causadores de infecções, como o material genético do Sars-CoV 2 que buscamos agora."

O pesquisador, porém, faz questão de refrescar a memória, antes de a gente espalhar a história da saliva como pura novidade: o conceito de examiná-la não surgiu anteontem. Ao contrário. "A base da Medicina antiga eram os humores, como eram chamados os líquidos do nosso corpo. E as doenças, por sua vez, seriam desequilíbrios neles", lembra o professor.

Claro que hoje ninguém acredita, como os gregos e os romanos daquela época, que os nossos medos ou as nossas alegrias, as nossas raivas ou as nossas tristezas seriam por conta dos fluidos do organismo. Essa Medicina baseada em equilibrar o que flui em nós — ou de nós — ficou para trás no Renascimento, lá por meados dos anos 1300.

No entanto, por todo esse tempo, o povo da saúde continuou olhando para o sangue e para a urina, por exemplo, a fim de saber a quantas andamos. Qualquer pedido de check-up deixa isso evidente. Já a saliva foi um pouco deixada de lado nas bateladas de exames, quando ela também poderia contar muita coisa. "Achavam que só traria informações do local onde ela está, ou seja, da própria boca. E isso é um engano", aponta Braz-Silva.

Para cada pergunta, um fluido melhor

"Toda doença deixa uma espécie de assinatura em nossos fluidos", o professor gosta de explicar assim. "Pode ser uma combinação de alterações ou a presença de moléculas que, no conjunto, formam a sua marca. O que nos resta saber é qual dos nossos líquidos escolher quando temos uma pergunta."

Em outras palavras, qual oferece uma resposta mais confiável, obtida de um jeito mais fácil ou menos agressivo conforme cada caso. Aqui, não há um caminho universal. "Por isso, não dá para afirmar que os testes de diagnóstico pela saliva, embora sejam aparentemente mais simples, deverão substituir todos os outros no futuro", esclarece o especialista no assunto.

Cuspir, por exemplo, é claramente mais fácil do que estender o braço para tirar sangue. Não só por nos livrar da picada, mas por não exigir seringa nem alguém que saiba acertar a agulhada em cheio na veia. Ora, dá até para fazer autocoleta. Como? Cuspindo em um potinho esterilizado que o pessoal de laboratório de análises chama de universal. É aquele que você enche ao fazer exame de urina, mas que, no caso da saliva, dá e sobra: o volume equivalente ao de 1 colher de chá de uma cusparada já é mais do que suficiente.

"Mas, se quero saber se os hormônios estão bem, sem dúvida o sangue continuará sendo o meio ideal para dosá-los. Eles estarão em uma concentração bem maior ali", exemplifica o professor da USP.

E agora: será que a pessoa está com o novo coronavírus? Já para esta pergunta, a resposta dificilmente estará na corrente sanguínea. "Para isso, seria preciso o vírus tomar conta dela, no fenômeno da viremia. E não é o que acontece", afirma Braz-Silva. Portanto, secreções nasais são melhores opções. A saliva também. O cuspe, com tudo junto e misturado, nem se fala.

Os testes de covid-19 por meio da saliva

Na revisão que o professor conduziu com seus colegas, os testes para flagrar a presença do novo coronavírus tiveram uma sensibilidade que variou de 80 a 100%. Parecida, diga-se, à dos exames de RT-PCR feitos com amostras colhidas pelo swab na nasofaringe.

Além de a aceitação por parte das crianças ser bem maior — o foco deste trabalho eram elas —, foram percebidas outras vantagens. "Como os pais podiam colher a saliva dos filhos, as equipes de saúde ficaram menos expostas a pessoas possivelmente contaminadas", diz Braz-Silva, revelando uma delas. Ora, sabemos bem como precisamos poupar esses profissionais, ainda mais com a onda da covid-19 subindo— primeira, segunda, seja qual for.

Ainda pensando na saliva, pode ser mais fácil para o pessoal do laboratório flagrar as impressões digitais deixadas pelo vírus — como anticorpos e proteínas —, porque sua concentração termina sendo maior nesse tipo de amostra. "Não por nada, é que o swab com o material da nasofaringe precisa ficar mergulhado em um tubinho com um líquido conservante. Daí que há uma diluição", descreve o professor.

Um aviso apenas: é bastante importante que você não demore muito para fazer o exame que detecta o material genético do vírus, tanto na saliva quanto no swab. Se levar mais de cinco dias dos sintomas iniciais para a coleta do material, haverá uma perda da sensibilidade do exame. "Aqueles 'rastros' deixados pelo vírus, porém, são capazes de durar mais tempo, mostrando outra vantagem da saliva", comenta Braz-Silva.

Finalmente, entre os fluidos do nosso corpo, a saliva é talvez um dos mais estáveis, enfrentando viagens até o local de análise, em tese, com menos risco de problemas.

Para colher o exame

O professor Braz-Silva explica que existem, sim, limitações. "Em pessoas que não têm uma boa produção salivar, como alguns pacientes passando por tratamento de câncer, pode haver interferência no resultado", ele conta. E, aí, não só no que diz respeito ao diagnóstico da covid-19, mas a qualquer exame pela saliva.

Segundo o professor, tirando isso, é algo que pode ser feito do zero aos 100 anos. "Se a criança é pequena demais para saber cuspir, podemos usar uma espécie de sugador", ele conta. Já para os mais velhos, uma alternativa a cuspir no pote é mascar por alguns minutos um rolo de algodão, que lembra aquele usado pelo dentista.

A única exigência é de que o indivíduo não tenha ingerido nada meia hora antes, nem chupado bala. "E, dependendo do que quero buscar na saliva, é melhor o exame ser feito logo cedo, sem a saliva ter sido influenciada pela alimentação ou pelo cafezinho", conta.

Novas perspectivas

Com amostras da saliva de pacientes de covid-19 em mãos, os cientistas pretendem ir além do diagnóstico da infecção. Em um trabalho em andamento, Braz-Silva e seus colegas estão analisando o comportamento do vírus no curso da doença por meio das mudanças que ele provoca em substâncias como aquelas que são marcadores de inflamação.

E não é só questão de entender mais o Sars-CoV , mas também de conseguir saber quando alguém pode ter alta hospitalar com maior tranquilidade. Segundo o professor, é até possível que, amanhã ou depois, a saliva aponte para um prognóstico: afinal, como seria a assinatura da doença em pessoas infectadas com maior risco de complicações? É uma boa pergunta e os pesquisadores correm atrás da resposta esmiuçando moléculas do cuspe de infectados.

"A saliva, na qual também podemos buscar anticorpos, talvez também se mostre excelente para revelar a porcentagem da população que responde bem a uma determinada vacina", imagina Braz-Silva. "Afinal, é mais fácil fazer esse exame do que colher sangue de uma grande quantidade de gente", pondera.

Por enquanto, porém,o grande desafio é outro: é desenvolver alternativas que, como o exame de saliva para flagrar o HIV da Aids, possam ser encontradas, um dia, em qualquer farmácia. "Nunca é tão simples. Desenvolver testes que ofereçam respostas rápidas com segurança é percorrer o caminho mais longo de estudos", afirma o professor. O tipo de paradoxo que deixa qualquer cientista salivando.