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Blog da Lúcia Helena

Se o diabo existe, ele patenteou o pernilongo para acabar com o sossego

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Imagem: iStock

Colunista do VivaBem

13/10/2020 04h00

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A gente aprende desde os tempos de escola que toda criatura tem uma função na natureza e que, se ela some do mapa, acaba prejudicando outra espécie até desequilibrar tudo. Mas para toda regra bonitinha há exceção: me diga, quem na face da Terra sentiria a falta do pernilongo, meu Deus?!

Não tem biólogo no mundo — falando sério — com esta resposta. Bem, talvez teriam saudade os fabricantes de inseticidas, repelentes e raquetes capazes de eletrocutar esses seres alados que infernizam nossas noites a partir do momento em que os termômetros começam a marcar temperaturas mais altas.

O calor mexe com a fisiologia dos pernilongos ou muriçocas ou, se preferir soltar o verbo, desses CulexCulex quinquefasciatus, nome e sobrenome científicos. O clima quente acende a chama da paixão nos machos, que ficam em seu canto, perto do endereço dos criadouros, bebericando a seiva de plantas para aguentarem a orgia com as fêmeas jovens que mal começaram a bater suas asinhas por aí.

Enquanto isso aquelas fêmeas mais descoladas, que já copularam, voam longe quando o sol se põe. Viajam pelos ares atrás do nosso sangue, carregado de proteínas e ferro para os 100, 200 ovos que conseguem botar de uma vez. Elas se fartam tanto que, na volta, quando despejam os ovinhos na água suja, podem estar pesando o triplo.

A temperatura elevada também faz as larvas aparecerem mais ligeiro e, assim, cidades que estão ardendo apesar de ainda ser primavera antecipam a estação dos insetos, das noites mal dormidas, picadas e coceira. Em determinadas regiões de São Paulo, por exemplo, cada morador parece dividir o quarto com dezenas de pernilongos.

"Um dos fatores mais preponderantes para a multiplicação desses insetos seria o desequilíbrio nas águas de rios e riachos", diz a bióloga Sirlei Antunes Morais, especialista em entomologia, mestre e doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo. Segundo ela, geralmente o que se espera é um fluxo contínuo de águas límpidas com pH neutro, além da presença de fauna e flora. Decididamente — e é triste — não é o caso do rio Pinheiros, na capital paulista, um verdadeiro berçário de pernilongos.

"Em um rio assim poluído, o pH oscila entre o ácido e o extremamente alcalino, sem contar que a água é tão turva que impede a entrada de luz para a produção de oxigênio. Com isso, não há peixes, que seriam os predadores, alimentando-se das larvas desses mosquitos", diz a especialista.

E nem pense que uma boa dose de veneno resolveria a questão: a água poluída e quente, avisa a bióloga, também bloqueia a ação de larvicidas, sejam químicos ou biológicos. Aliás, ao contrário, o caldo imundo e sem concorrentes se torna o ambiente ideal para a sobrevivência das larvas, já que é repleto de matéria orgânica para satisfazer a sua dieta. Portanto, nessa temporada calorenta quem mora perto de rios e córregos poluídos está frito. Ou melhor, picado.

Não adianta se esconder

A fêmea Culex sempre nos acha. Seus olhos são um projeto perfeito para caçar vítimas. Na verdade, são dois conglomerados de globos oculares minúsculos capazes de ampliar o seu campo de visão — e, não à toa, a fazem escapar da mão ou da raquetada raivosa. E não só isso: são próprios para enxergar na escuridão.

Mas eu diria que, independentemente dessa capacidade de nos mirar com a luz apagada, quem está vivo não escapa. Isso por causa da maldita antena que esses insetos têm. Ela detecta o calor do nosso corpo, o cheiro exalado pelo nosso suor e o gás carbônico que soltamos pela boca e pelo nariz. Se respiramos, somos flagrados. Sem escapatória.

Música ruim para os nossos ouvidos

O zunido que tira qualquer um do sério é produzido pelas asas. Pudera: elas batem impressionantes 300 vezes por segundo e, desse jeito, deslocam o ar produzindo o som, mais perverso do que o do despertador. E ele ainda parece soar dentro das nossas orelhas. Faz sentido. Segundo Sirlei, o pernilongo se aproxima rondando a nossa cabeça provavelmente porque é uma área que concentra mais gás carbônico ao redor, liberado a cada vez que expiramos. Resultado: vítima localizada.


Projetado para o ataque

O corpo inteiro da fêmea do pernilongo parece ter sido desenhado para essa maldade. Ela tem, para começo de conversa, três pares de pernas longas — daí o nome popular —, divididas em cinco partes articuladas. Dobra uma assim, dobra a outra assado. E desse jeito, com mais possibilidades posturais do que praticante de kama sutra, sempre consegue o melhor ângulo para um pouso perfeito na nossa pele.

Uma vez que aterrissa, finca suas unhas tarsais — termo para estruturas nas pontas das patas que a deixam firme em nosso corpo, com a estabilidade necessária para fazer o seu serviço vampiresco. É o momento de usar a sua probóscide. Eu sei, o nome é pavoroso. Designa a sua boca comprida, que parece guardar instrumentos feito um canivete suíço.

Primeiro, um deles serrilha a pele. Daí, espeta uma agulha completamente flexível que fica se movendo de um lado para outro, cutucando até achar um vaso. Depois, enquanto um canal chupa o sangue feito canudinho, outro injeta anticoagulantes e moléculas anestésicas. A gente não sente nada, até a mamãe pernilongo escapar de barriga cheia.

Quem sai mais picado?

Pergunto para Sirlei Morais por que às vezes, em um mesmo quarto, uma pessoa parece ser sorteada para ser devorada pelos pernilongos enquanto outra termina a noite com uma ou duas picadinhas. "Há especulações sobre que fatores norteiam a aproximação do Culex até uma pessoa: presença de suor, um sangue mais quente, perfume, mais áreas do corpo expostas, entre outros", diz ela. "Aquele que é mais picado certamente apresenta, naquele instante, uma soma maior desses fatores."

A picada pode transmitir alguma doença?

"O Culex transmite doenças em regiões onde há circulação de agentes específicos, como o parasita causador da filária", responde a bióloga, referindo-se à doença também conhecida como elefantíase. Ou seja, o fato é que, em algumas regiões, a presença de pernilongos domésticos não se resume à coceira sem fim. Mas, calma, não é o caso de São Paulo e outros centros urbanos, por exemplo. "De modo geral, o Culex é mais conhecido por causar incômodo", tranquiliza Sirlei.

Por que coça tanto?

O que provoca a coceira é, na verdade, a reação do sistema imunológico às substâncias injetadas pelo pernilongo para conseguir sugar o nosso sangue. Isso provoca a liberação de moléculas de histamina que estão por trás da vermelhidão e do prurido sem fim. É claro que a resposta é muito individual — tem gente que sente mais, tem gente que sente... mais e mais! Medicamentos que neutralizam essas substâncias, os famosos anti-histamínicos, podem até causar algum alívio na forma de pomada. Mas vale pedir a orientação do seu médico.

Para se livrar do mal

Nenhuma solução é 100 por cento garantida, sinto informar. Repelentes ajudam? Sim, a DEET, molécula presente nesses produtos, entopem os sensores nas antenas no inseto, que fica então desbaratinado. Mas o efeito não dura mais do que poucas horas em concentrações que não são muito tóxicas.

O piretroide é outra molécula que desnorteia o pernilongo. Ela é usada, por exemplo, em aparelhos ligados à tomada. Estes nunca devem ficar perto da cabeceira da cama, pois o risco de intoxicação existe — a distância correta é de 2 a 3 metros, para você ter ideia.

Menos arriscado — embora não seja uma solução mágica — é vedar as janelas com telas e ligar o ventilador ou o ar-condicionado à noite, porque isso diminui a disposição da fêmea para ficar sobrevoando o local. Saídas caseiras, do limão ao vinagre, não têm a menor evidência científica. Ah, sim, existe ainda a possibilidade de você sair pela madrugada feito um tenista em campeonato de Wimbledon. Especialistas dizem que a sensação é mais psicológica, ao marcar um ou outro ponto contra o adversário, comemorados com o barulhinho de sua derrota na rede elétrica.

O fumacê é apenas nuvem passageira

Os paulistanos estão cobrando as autoridades para que façam a fumegação nas margens do rio Pinheiros. Mas Sirlei Morais esclarece que essa também não é a melhor alternativa. "É apenas emergencial e não podemos apelar para ela indiscriminadamente. O que isso faz é reduzir um pouco a atividade dos insetos, mas somente na fase alada, isto é, quando já são adultos", diz ela. "As fêmeas até passam a por um número menor de ovos e voam menos, quando não morrem. E isso faz a população de pernilongos regredir. " É, mas só por um tempo. Na água pútrida, ovos e larvas continuarão intactos e logo uma nova geração de pernilonguinhos sairá voando outra vez.

Aviso: repetir o procedimento sempre é perrengue. "Há uma indução de resistência por parte dos insetos se repetimos os mesmos princípios ativos ", informa Sirlei. Ou seja, com o tempo, a mesmice faz a fumegação perder efeito. E variar os inseticidas — se por acaso teve essa sacada de gênio — não é nada simples. "Há classes de produtos que são prejudiciais às pessoas e aos animais de sangue quente e outras, nem tanto", diz ela. Moral, pode ser trocar o nem tão bom pelo pior.

Segundo a bióloga, noites de verão bem dormidas, sem o atordoamento nos ouvidos nem a coceira irritante na pele, só voltarão a existir quando o leito do rio poluído — no caso de São Paulo, especialmente o Pinheiros — voltar a ter fluxo.

"Essa ação mecânica oxigenará a água", explica a bióloga. "Isso fará com que a vida volte, isto é, retornarão os predadores, peixes que comeriam as larvas do Culex. Elas simplesmente não conseguem sobreviver onde a natureza está liderando." Mas, da natureza morta ou ameaçada, surgem vários males e o Culex pode ser o menor deles. A humanidade sai perdendo. No mínimo, perde a paz de espírito, enquanto se coça.