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Jairo Bouer

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Saúde mental e exposição da intimidade: a condenação de uma mulher

Câmera de segurança filmou o momento em que mulher foi flagrada pelo marido dentro do carro, tendo relação sexual com morador de rua - Reprodução
Câmera de segurança filmou o momento em que mulher foi flagrada pelo marido dentro do carro, tendo relação sexual com morador de rua Imagem: Reprodução

Colunista do VivaBem

31/03/2022 04h00

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Talvez um dos assuntos mais comentados nas últimas semanas, pasmem, foi a história da mulher que foi "flagrada' pelo marido tendo uma relação sexual com um morador de rua dentro do carro, no Distrito Federal. Em meio à pandemia, guerra, inflação e eleições, as redes sociais e parte da mídia resolveram focar na intimidade da vida alheia.

A história incomodou muita gente desde o início. Trago algumas perguntas que me inquietaram: será que importa mesmo para o domínio público o que cada um faz com sua vida privada? Será que se fosse o contrário, um homem "pego" pela mulher fazendo sexo com uma moradora de rua, a repercussão teria sido a mesma? Isso é motivo de piada? Gostei muito dos textos das colegas colunistas do UOL Nina Lemos e Luciana Bugni a esse respeito.

Mais: o fato de um dos envolvidos ser alguém que vive em situação de rua fez com que as pessoas condenassem ainda mais a mulher, reforçando um preconceito social perverso (além de "trair" o parceiro, ela ainda tinha que escolher esse cara?).

E muito importante: até que ponto toda a exposição trazida pelo caso não vai trazer impactos profundos para a saúde mental de todos envolvidos? O marido "traído" que virou motivo de chacota, o morador de rua que ganhou "publicidade" e que talvez ainda não tenha entendido o que as redes sociais carregam de riscos e, mais grave ainda, a mulher que protagonizou o episódio e se tornou a principal vítima desse enredo sinistro.

Fase de mania do transtorno bipolar

Para tornar a situação ainda mais cruel, essa semana um laudo do Hospital Universitário de Brasília, que avaliou o caso sugere que a mulher está em fase de "mania" do transtorno bipolar, ou seja, ela está enfrentando um transtorno mental. É sério: a intimidade de alguém que está doente foi vazada e divulgada aos quatro cantos. Preocupa-me o risco que essa pessoa corre ao sair da fase de mania e compreender, de fato, tudo o que aconteceu.

Explico melhor: na mania, a pessoa pode enfrentar uma quebra de contato com a realidade (quadro psicótico). Ideias de grandeza e de poder (sou o super-homem e posso fazer qualquer coisa), delírios de cunho religioso (sou o escolhido de deus para salvar o mundo), perda da crítica e descontrole de impulsos (gastar sem limites, dar presentes para todo mundo) e desinibição sexual e aumento da libido (pensar e fazer sexo com quem aparecer pela frente) são alguns dos sintomas que podem surgir.

Na mania, a pessoa ainda pode ficar acelerada, eufórica, falar sem parar, o discurso muitas vezes se perde (arborização), aumenta o apetite, apresenta dificuldade para dormir, há uma agitação psicomotora e intensa inquietação, comportamentos desorganizados e inadequados, dificuldade de manter o foco e, o que pode dificultar muito a percepção de que algo está errado: uma sensação de felicidade e de bem-estar (por que vou me tratar se estou me sentindo tão bem?).

Como em qualquer transtorno psiquiátrico, a presença de um ou mais sintomas e a intensidade deles varia muito de pessoa para pessoa. Um quadro de transtorno bipolar pode se iniciar tanto com uma fase de depressão como de mania. Ele é crônico, e a pessoa pode enfrentar uma ou várias fases ao longo da sua vida.

Muitas vezes, mesmo quem está ao lado percebe que o indivíduo está um pouco diferente, mas tem dificuldade de entender o que acontece. E a certeza do diagnóstico pode aparecer apenas depois de uma atitude que chama muito a atenção (como essa que foi filmada e divulgada sem a menor cerimônia para o mundo todo).

Linchamento virtual e riscos

O episódio é uma boa oportunidade para a gente discutir o linchamento virtual, a exposição da intimidade alheia e o humor construído pelas redes em cima do sofrimento e da doença do outro (nesse sentido o caso dialoga com o episódio que aconteceu com Jada PInkett Smith na entrega do Oscar no último domingo.

Familiares, amigos e especialistas que acompanham pacientes em mania que estão saindo de uma crise sabem que uma das questões mais complicadas para lidar nessa fase, além das eventuais reparações econômicas e sociais, é a consciência plena do que aconteceu e a sensação de "desmoralização" ("Como eu pude fazer isso? O que as pessoas vão pensar de mim? Como vou encarar todo mundo de novo?").

Se esse momento já é complicado para qualquer um saindo de uma fase de mania, o que pensar de uma mulher que foi exposta e condenada publicamente sem ter a menor noção do que estava acontecendo? Toda a situação reforça a importância de um suporte próximo e intenso tanto dos familiares e amigos como dos profissionais de saúde mental.

Como indivíduos e sociedade (com nossas redes sociais) e como veículos de mídia, a gente precisa admitir que errou e pedir publicamente desculpas para essa mulher. E que o espaço para as retratações seja proporcional ao "circo" que foi criado. Foi vergonhoso, desumano, cruel e extremamente perigoso o que foi feito com ela. Deixo aqui registrada minha solidariedade e empatia a todos os envolvidos e às suas famílias.