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Gustavo Cabral

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Varíola do macaco: especialista responde 6 perguntas sobre a doença

Colunista de VivaBem

13/06/2022 04h00

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Não bastassem dois anos de luta contra a covid-19, agora surgiu a varíola do macaco para assustar a sociedade.

Antes de tirar algumas dúvidas sobre o problema, quero adiantar que a varíola do macaco não é uma doença nova, como a provocada pelo coronavírus, nem tem o potencial de disseminação da covid. Portanto, é muito pouco provável que cause uma pandemia e gere todo o prejuízo humano, financeiro e educacional que o coronavírus provocou.

Mas, para que você possa entender melhor tudo o que envolve o tema, convidei uma grande amiga com quem estudei e trabalhei na Universidade Oxford (Inglaterra), a Dra Ana Luíza Gibertoni, que é médica infectologista pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), mestra em saúde pública pela Universidade Harvard (EUA) e doutoranda pelo Departamento de Saúde Populacional da Universidade Oxford.

1. O que é a varíola do macaco? E qual a relação dela com o vírus causador da varíola humana? Pois sabemos que a varíola (humana) é uma doença milenar, mas a varíola do macaco não é tão antiga assim.

Ana Luíza Gibertoni: A varíola do macaco é provocada por um vírus pertencente à família Poxviridae, a mesma do vírus da varíola humana. Ele causa uma doença em nós muito parecida com a varíola humana, porém, geralmente mais leve e com menor morbi-mortalidade.

A varíola humana acompanha a espécie humana há milênios e estima-se que foi a responsável por 10% das mortes no século 20 (entre 300 e 500 milhões) no mundo todo. A varíola do macaco, até o momento atual, foi responsável por um número muito menor de mortes em alguns países da África Central (como República Democrática do Congo e Sudão) e Ocidental (como Nigéria, Serra Leoa e Gana). Na África, o vírus é uma enzootia (estabelecido em populações animais, provavelmente roedores) e a doença em humanos é endêmica (tem número de casos mais ou menos constante, e é adquirida por meio do contato com animais).

O vírus da varíola do macaco foi descoberto em 1958 em macacos de laboratório —daí o nome, que é um pouco injusto, pois o macaco não é o reservatório animal principal. O primeiro caso humano foi detectado na República Democrática do Congo em 1970.

A primeira vez em que esse vírus causou doença humana fora da África foi em 2003, nos EUA. Houve um surto em vários estados, que terminou com 81 casos confirmados e, felizmente, nenhuma morte. O vírus teve entrada no país por meio de mamíferos roedores importados de Gana, que o transmitiram a cães da pradaria (um tipo de roedor) em território americano. Esses animais, comumente mantidos como animais de estimação, foram os vetores da doença para as pessoas.

2. No passado, houve casos isolados da doença fora da África, mas a transmissão se deu por pessoas que regressaram infectadas do continente africano. Agora, parece ser diferente. O vírus está se espalhando pelo mundo todo e há indivíduos doentes que não viajaram para a África (o que sugere uma transmissão local). Como explicar essa situação e qual a gravidade dela?

Ana Luíza Gibertoni: Há algumas hipóteses que explicam o porquê dessa situação. Sabe-se que a população que tem menos de 50 anos não tem imunidade à varíola, por conta do final das campanhas de vacinação contra o vírus da varíola humana no fim da década de 1970 —consequência de uma das maiores conquistas da humanidade, a erradicação da doença.

Uma outra questão que se levanta é se o vírus tornou-se mais patogênico (com maior capacidade de provocar uma doença) ou mais transmissível, por conta de mutações, fato para o qual ainda não dispomos de evidências suficientes, já que a vigilância genômica ainda é incipiente.

A explicação mais plausível, até o momento, é a de que esse vírus foi reintroduzido na Europa por um indivíduo que retornou de país endêmico na África. No continente europeu, a doença "encontrou" uma situação bastante propícia para se espalhar —possivelmente fazendo parte de um segmento da sociedade extremamente bem conectado social e fisicamente.

O vírus, cujo interesse único é infectar o maior número possível de pessoas, independentemente de quem elas sejam, tirou muito bom proveito disso. O fato de a maior parte dos infectados se identificarem como homo ou bissexuais indica que o vírus foi introduzido numa população em que contatos físicos próximos são mais regulares e frequentes do que a média da população em geral, e isso se configurou numa rota rápida para a disseminação na população. Isso não quer dizer que transmissão não ocorra por meio de contato não sexual —a questão sexual nunca havia sido detectada nesta magnitude de agora—, mas é importante que essa informação seja disponibilizada para que a comunicação do risco e as políticas de contenção sejam adequadas a quem mais precisa.

3. Poderia se aprofundar um pouco mais sobre as formas de transmissão da varíola do macaco?

Ana Luíza Gibertoni: Tipicamente, a transmissão do vírus da varíola do macaco se dá de animais (mais comumente roedores) para humanos, por meio de contato próximo, principalmente pelo consumo de carne. Transmissão de pessoa para pessoa acontece também por contato próximo e prolongado.

O vírus entra no organismo humano através da pele (esteja ela visualmente íntegra ou não) e de mucosas expostas aos vírus presentes nas lesões cutâneas ou nas partículas que exalamos durante a respiração, ao tossir, falar, espirrar. A infecção pode acontecer, também, por contato indireto com o vírus em peças de roupa, toalhas ou lençóis (a chamada via por fômites).

Como exemplos destas dinâmicas de contatos prolongados e próximos, podemos imaginar pais e filhos pequenos, cuidadores e pessoas fisicamente vulneráveis, profissionais da saúde e doentes graves. Obviamente que o contato sexual é propício à transmissão —e, como eu já disse, o vírus aproveitou essa via muito bem—, mas gostaria de enfatizar que a varíola do macaco não é tipicamente uma infecção sexualmente transmissível (IST), já que outros contatos que não o sexual também envolvem risco de transmissão.

Portanto, a estigmatização de comportamentos ou práticas sexuais não faz o menor sentido (nunca fez, para qualquer outra IST), e podemos construir uma nova narrativa bem mais positiva para a epidemiologia atual: em países desenvolvidos, onde a doença fora da África foi inicialmente detectada, a população LGBTQIA+ é tradicionalmente muito engajada com nos cuidados com a saúde sexual, o que possibilitou a detecção rápida da doença.

4. E qual a letalidade do vírus?

Ana Luíza Gibertoni: A grande maioria das infecções traz risco de morte bastante baixo (cerca de 1%), mas ainda estamos aprendendo sobre o comportamento desse vírus em populações urbanas de países desenvolvidos, o que incluirá pessoas com imunossupressão de várias naturezas.

5. Não é estranho uma doença que não é nova gerar preocupação global? Esse é mais um exemplo de que não damos a mínima para problemas de saúde que atingem países "pobres" e só vamos olhar para essas doenças quando elas nos atingem?

Ana Luíza Gibertoni: Sim. Os casos em países desenvolvidos suscitando tanto interesse e preocupação neste momento contrastam enormemente com o fato de que esse mesmo problema, quando exclusivo de países pobres africanos, sempre foi ignorado pela comunidade da saúde pública global.

Há anos a comunidade científica e de saúde pública da República Democrática do Congo, por exemplo, alerta o mundo sobre o potencial de espalhamento da varíola do macaco para populações humanas e da possibilidade de esse vírus em se adaptar a esta população, por meio da transmissão descontrolada entre pessoas.

Essa epidemia de casos em humanos é mais um exemplo da interferência indevida do homem sobre ecossistemas, com o contato com animais selvagens, seja o desmatamento para urbanização ou para agropecuária, seja a ocupação desordenada de áreas de floresta por populações pobres e sem recursos, que não só passam a ocupar um espaço novo, como também a se alimentar de animais desses ecossistemas por falta de outras possibilidades.

O surto de varíola do macaco também mostra, de maneira cabal, quão danosa é a política deliberada em não se fornecer recursos financeiros para pesquisa e colaborações científicas que abordem problemas de saúde pública de países em desenvolvimento, além da dificuldade de espaço para divulgação da ciência que nossos colegas em muitos países africanos fazem.

6. Pode falar um pouco sobre a importância da vigilância científica, pois a sociedade, de modo geral, só consegue perceber como esse trabalho "invisível" é valioso quando uma tragédia está surgindo

Ana Luíza Gibertoni:Em linhas gerais, a genômica de micro-organismos que causam doença é uma tecnologia de ponta que permite a identificação precisa de um agente infeccioso; o conhecimento, já consolidado para alguns micro-organismos, dos melhores antimicrobianos para se tratar uma doença (através da detecção de mutações associadas com resistência a antibióticos); e uma visão extremamente detalhada do perfil genético de cada cepa envolvida em um surto ou em um território ao longo de determinado tempo, permitindo assim o desenho de árvores genealógicas, que nos mostram quão próximas cada cepa está, e se é provável que elas façam parte de uma mesma cadeia de transmissão.

Esses três pontos são basicamente tudo o que especialistas em doenças infecciosas, do ponto de vista clínico e de saúde pública, desejam de um único teste. A pandemia de covid-19 nos mostra como é imprescindível um sistema de vigilância ágil, com capilaridade territorial e amostragem longitudinal, que forneça uma visão precisa das variações nas taxas de infecção e nas dinâmicas envolvendo surgimento e substituição de variantes genéticas.

Esse conhecimento tem repercussão fortíssima sobre políticas de controle de doenças, principalmente estratégias de vacinação (novas variantes podem estar associadas com escape imunológico e indicar a necessidade de novas formulações, por exemplo) e tratamento com antivirais e anticorpos monoclonais.

Em suma, a vigilância genômica permite que o sistema de saúde esteja mais bem preparado para tratar quem precisa, e que a saúde pública concentre suas forças em identificar casos, contatos e bloquear cadeias de transmissão, eliminando o problema pela raiz, em última análise.

Vale lembrar que, diferentemente da pandemia de covid-19, essa epidemia de varíola do macaco pode, sim, ser extinta se todos os casos e contatos forem identificados e isolados. Países sem reservatórios animais podem e devem erradicar a doença de suas populações —o objetivo é baixar a taxa de infecções para zero.