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Gustavo Cabral

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Por que a 3ª dose pode não funcionar como o esperado em algumas vacinas

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Imagem: iStock

Colunista do VivaBem

09/08/2021 04h00

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Conforme a vacinação avança em muitas partes do mundo, alguns países, como França e Israel, insistem em anunciar a aplicação da terceira dose de reforço da vacina contra a covid-19, inclusive com data marcada. O assunto também vem sendo muito explorado pelos fabricantes, que tentam "forçar" o uso de uma dose de reforço, apesar de dados e a comunidade cientifica mostrarem que as injeções de reforço contra o coronavírus ainda não são necessárias, como bem explicadinho em um artigo da NatGeo.

Antes de pensarmos em terceira dose, temos que focar na solicitação da ONU (Organização das Nações Unidas) de focar na imunização global para podermos controlar a pandemia. E saiba essa imunização está longe de acontecer. Enquanto países ricos já vacinaram mais de 50% da população, há países que não ultrapassaram 1% da população vacinada. Isso preocupa pois, como já falei, manter países "pobres" fora do controle da pandemia é lucrativo para farmacêuticas, mas extremamente perigoso para a sociedade

Terceira dose pode não funcionar como o esperado

A aplicação da terceira dose exige um grande investimento financeiro e humano e, se algumas questões científicas não forem bem planejadas, podemos ter resultados pífios.

Recentemente, conversei com alguns colegas envolvidos nos testes da dose de reforço em pessoas que já receberam duas doses. Brinquei falando que, ao usar as vacinas da AstraZeneca, Janssen e Sputnik V nesse reforço, os resultados das pesquisas não seriam o que eles estavam esperando. Ficou um clima meio chato, mas realmente isso pode acontecer.

Essas três vacinas usam vetores virais —um "vírus vivo enfraquecido", como um adenovírus de chimpanzé, que causa no máximo um resfriado— para levar para dentro de nossas células um pedaço do coronavírus (Sars-Cov-2). No caso, esse pedaço é a proteína S (Spike), utilizada pelo causador da covid-19 para entrar nas células humanas.

O vetor viral é uma solução para desenvolver uma vacina sem precisar colocar o coronavírus no corpo. E isso tem funcionado muito bem. Porém, precisamos imaginar que, para essas vacinas funcionarem, esses vírus carreadores precisam ser capazes de entrar em nossas células e usar sua maquinaria para produzir a proteína S do coronavírus.

Quando injetamos esse tipo de vacina, ela estimula o sistema imunológico para agir contra o coronavírus, mas também contra o vetor viral. Portanto, quanto mais a imunização for muito aplicada em uma pessoa, mais o corpo dela vai aprender a combater esse vetor viral, fazendo com que ele cada vez menos consiga entrar em nossas células —e aí a vacina pode não ter a eficácia esperada nas doses extras para reforço.

Repito: isso pode ocorrer com as vacinas da AstraZeneca, da Janssen e com a Sputnik V.

Uma estratégia adotada na Sputnik V foi usar dois adenovírus diferentes. Ou seja, a primeira dose usa um "vírus carregador" da proteína S do coronavírus e na segunda dose há um "boost", com um carregador diferente, permitindo que o vetor viral tenha maior eficiência para entrar nas células —essa tecnologia, inclusive, foi erroneamente criticada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Provavelmente, esse é um dos motivos para Sputnik ter obtido mais de 90% de eficácia, enquanto a AstraZeneca gira em torno de 70%. E aí, como na terceira dose haverá um vetor viral "conhecido" para o nosso organismo, a imunidade que desenvolvemos contra ele pode impedir sua entrada nas células —fazendo com que ele não estimule suficientemente o sistema imunológico contra o coronavírus, que é o que esperamos.

Não estou aqui só para criticar o trabalho dos colegas, nem acho isso bacana. Por isso, vou destacar também boas estratégias que estão investigando para aumentar a proteção contra a covid-19, como usar duas vacinas diferentes, além de outras estratégias vacinas que cientificamente discutimos.

Porém, ressalto que qualquer estratégia precisa antes ser analisada em laboratórios e em grupos testes, para avaliar a eficácia e os possíveis efeitos colaterais.

Nunca podemos nos esquecer que por trás da aplicação da terceira sempre tem a questão de interesse econômico, pois as farmacêuticas querem colocar suas vacinas na população —e a tática de aplicar uma dose de uma vacina e uma dose outra pode não ser interessante para as empresas. Mas como nós, cientistas, estamos pouco ligando para questões puramente financeiras e nos preocupamos só com a saúde pública, temos de pensar em chegar nas melhores metodologias para obtermos os melhores resultados.

E as outras vacinas?

Não temos só vacinas contra a covid com vetores virais. Aqui no Brasil, o imunizante da Pfizer e a CoronaVac usam outras tecnologias.

Na vacina da Pfizer, que usa um RNA mensageiro (mRNA) para levar a informação do coronavírus até nossas células, nosso organismo não desenvolve tanto uma proteção contra esses mensageiros como no caso do vetor viral, pois eles contam com cápsulas (LPNs) que protegem o mRNA —como já expliquei aqui.

Mas vale ressaltar que essas vacinas têm demonstrado excelente eficácia e memória imunológica com duas doses. Portanto, pensar em terceira dose é "forçar a barra", um interesse puramente comercial nesse momento, não de saúde pública. Se fosse de saúde pública, países ricos doariam essa "dose extra" para imunizar pessoas em outras nações e controlar a pandemia mais rapidamente, como sugere a ONU.

Finalmente, por incrível que pareça para muita gente, a CoronaVac é a vacina em que a terceira dose tem maior chance de bons resultados —e sem efeitos colaterais. Isso por que ela usa uma tecnologia muito bem conhecida —a do vírus inativado ("morto").

Porém, isso não quer dizer que governadores já devem planejar e anunciar a data de reforço da vacina, pois podem gerar uma desconfiança ainda maior com a CoronaVac, que já sofre perseguição por parte da sociedade desde antes de sua aprovação.

Além disso, temos que ter todos os cuidados para não levar a população a acreditar que pode tomar doses de reforço indiscriminadamente, pois alguns têm pessoas conhecidas que podem facilitar o acesso a vacinas. Tomar uma terceira dose ou combinar vacinas sem os devidos testes e recomendação do PNI (Plano Nacional de Imunização) é perigoso, pois qualquer desequilíbrio dos sistemas imunológico pode afetar a saúde de muita gente.