Topo

Elânia Francisca

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

bell hooks e a cura do auto-ódio pelo amor

bell hooks nos anos 1980 - Anthony Barboza/Getty Images
bell hooks nos anos 1980 Imagem: Anthony Barboza/Getty Images

Colunista do UOL

17/12/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Desde criança eu apanhava dos garotos da escola por ser favelada, ter cabelo assanhado e por ser, segundo eles, feia. Recordo de um momento em que um menino encostou o dedo indicador no meu nariz e disse que eu estava proibida de usar shorts nas aulas de educação física, porque minhas pernas eram tão finas que lhe davam nojo.

Na adolescência, com as mudanças físicas e emocionais, eu fui acreditando na ideia de que só seria amada se eu fosse muito inteligente, afinal eu sempre era lembrada de que a beleza não era meu melhor atributo. Passei a estudar muito e sempre fui elogiada demais por isso. Me sentia amada por meu intelecto.

Em minha escola —como em tantas outras, até hoje— havia brincadeiras feitas por adolescentes que eu chamo de ludicidade da descoberta sexual.

Havia um jogo chamado BNB (abreviação de beijo na boca). Funcionava assim: as meninas tinham que andar de figuinha, que é quando o dedo médio e o indicador ficam cruzados e, caso um menino a visse sem figa, ele poderia dizer: BNB! Daí ele ganharia um beijo na boca.

Eu queria muito ser beijada, então propositalmente eu deixava meus dedos soltos e bem à mostra, mas nenhum menino queria me beijar, então eles fingiam que não viam.

Certa vez um garoto me viu e disse ao amigo: "Olha lá, ela tá sem figuinha, fala BNB pra ela!". E o amigo disse: "Eu não! Não achei minha boca no lixo".

As minhas primeiras experiências afetivas foram baseadas numa mistura estranha de agressão física, psicológica e excesso de estudos para ser aceita e admirada. E eu chamava isso tudo de amor.

Na juventude e idade adulta fui me envolvendo em situações sexuais cada vez mais perigosas, justamente por acreditar que o amor só viria se eu performasse o tal do sexo selvagem. Falo um pouco disso nesse texto aqui.

Até o dia em que li um documento chamado "Vivendo de Amor". Cada palavra dita ali me atravessou o corpo todo, eu sentia que era uma carta para mim, um saculejo afetivo que eu precisava naquele momento.

E era bell hooks me dizendo que muitas passagens de minha vida nada tinham a ver com amor, mas com um racismo e machismo interseccionados, fazendo eu acreditar que ser amada estaria apenas no campo sexual e seria sinônimo de ser subjugada.

Eu nunca tinha visto uma mulher negra pautando o amor com tanto rigor cientifico-acadêmico e ao mesmo tempo tanta ternura.
Passei a ler mais sobre bell hooks, essa mulher incrível que ao nascer foi chamada de Gloria Jean Watkins, mas que em mulheragem* à sua avó Bell Blair Hooks, mudou seu nome e fez questão de garantir a grafia em letras minúsculas, justamente para que suas ideias recebessem mais valor e visibilidade que seu nome.

bell hooks é a acadêmica que me acompanha desde a especialização em gênero e sexualidade, foi quem me sustentou no mestrado e é quem me inspira no doutorado agora.

Enquanto escrevo esse texto, me emociono em recordar o quanto suas palavras me encantam e contribuem para a ampliação da palavra amor todos os dias. No último dia 15 de dezembro, bell hooks morreu e a notícia me acertou de tal maneira que precisei mudar o texto que publicaria hoje.

Quero mulheragear* bell hooks, essa mulher incrível que nos ensinou que o amor cura e nos recordou que não existe amor sem justiça.

Para quem quer começar a ler bell hooks, sugiro que comecem por "Vivendo de Amor" (um texto curto para aquecer) e depois se enveredem por "Ensinando a Transgredir: a Educação Como Prática de Liberdade" e se abram para "Tudo Sobre o Amor: Novas Perspectivas".

*As palavras mulheragem e mulheragear são um exercício de trazer para o feminino algumas palavras masculinizadas. Se a origem da palavra homenagem é "promessa de fidelidade que o vassalo fazia ao senhor feudal", podemos brincar com a língua portuguesa e mulheragear aquelas que produziram e produzem conhecimentos que nos acalentam e fortalecem.