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Elânia Francisca

"Crime, não é": a afetividade na adolescência é a prioridade no debate?

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

15/01/2021 04h00

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Semana passada, escrevi um texto no qual eu dizia que adultos não devem namorar adolescentes, pois isso pode fragilizar o desenvolvimento psicossocial dessa população. O objetivo era (e ainda é) sensibilizar pessoas adultas para a importância de exercerem um papel protetivo —e não de vulnerabilização — com a população infantojuvenil. Ou seja, o foco era a saúde mental e afetividade de adolescentes.

Contudo, alguns adultos optaram por não refletir sobre isso e decidiram defender o seu "direito" de namorar adolescentes sem serem punidos por tal ato. O foco, para essas pessoas, parecia ser a concretização do desejo afetivo-sexual por adolescentes.

Recebi algumas mensagens de pessoas adultas me perguntando se eu tinha conhecimento de um artigo do Código Penal que falava sobre a idade de consentimento, afirmando que eu poderia até "achar errado" adulto se relacionar com adolescentes, mas que "crime, não é!".

O que acho curioso nessa abordagem é que o Código Penal pensa a punição de alguém por algum crime cometido, então quando um adulto me aborda, perguntando se eu tenho conhecimento dessa legislação, a sensação que tenho é de que ele está mais preocupado em saber se será punido ou não por se relacionar com adolescentes do que em refletir sobre os desdobramentos daquele namoro no desenvolvimento da outra pessoa envolvida. Nesse caso, é como se a afetividade na adolescência não fosse a prioridade do debate, mas o desejo do adulto.

Por hora, eu não vou adentrar nas questões relacionadas à idade de consentimento presente no Código Penal Brasileiro —farei isso em outro momento com o apoio de alguém da área do direito penal, prometo —, mas o foco e a prioridade desse texto é a afetividade e seus impactos na saúde mental de adolescentes.

Lá no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) está escrito que crianças e adolescentes são prioridade absoluta e isso quer dizer que precisamos pensar e atuar considerando que a população infantojuvenil, por estar em fase peculiar de desenvolvimento, precisa ser priorizada no acesso aos serviços públicos, na construção de políticas públicas e no cotidiano familiar e comunitário. Toda ação de pessoas adultas deve ser realizada sempre pensando: que impacto (positivo ou negativo) isso terá na vida de crianças e adolescentes?

E não estou falando que essa responsabilidade seja somente de serviços públicos como escolas, unidades básicas de saúde ou centros comunitários. Estou falando de quando adultos xingam ou assediam pessoas na rua, das "piadas" racistas feitas no almoço de domingo, das conversas de ônibus e de apaixonamento. Que impacto essas atitudes adultas têm na vida de crianças e adolescentes?

Quando um adulto se apaixona por um adolescente, a primeiríssima coisa que deveria ser pensada é: quais impactos esse afeto terá na vida da pessoa por quem estou apaixonado? Mas o que se pensa e se diz, muitas vezes, é: "Serei punido por viver esse afeto com adolescente?". Perceba que na primeira pergunta o foco é a proteção de adolescentes, já na segunda o foco é a autoproteção do adulto.

Gosto se discute e amor tem idade, sim!

Adolescentes estão numa fase de desenvolvimento em que buscam pertencer a um grupo e ter o reconhecimento dos seus pares. Além disso, a puberdade faz com que o corpo e a mente passem por transformações que podem gerar insegurança com relação à aparência e fragilidade na autoestima.

Agora imagine uma menina negra de 15 anos de idade que, devido a diversas violências racistas sofridas na infância, acredita que não é bonita ou que ninguém vai se apaixonar por ela (sobre isso, sugiro que leiam minha dissertação de mestrado sobre afetividade de adolescentes negras). Agora imagine uma pessoa adulta (vamos colocar aqui a idade de 30 anos), dizendo a ela que está apaixonado, que ele a acha linda, que é tão inteligente que "nem parece adolescente", afinal é "mais madura que qualquer outra menina de sua idade". Agora façamos o exercício de perguntar: quais impactos essa fala terá na afetividade dessa menina?

Você pode estar pensando que essa menina citada é imaginária ou que é uma exceção, mas não é. Essa menina, na verdade, são várias. E também são vários meninos e menines* que estão numa fase tão delicada da vida que ficam vulneráveis no campo afetivo-sexual.

Nós, pessoas adultas, estamos, muitas vezes, mais preocupados em defender nosso direito de concretizar um desejo do que em dedicar tempo para refletir sobre saúde mental e afetividade de adolescentes. Precisamos suspender nosso desejo para avançar nessa questão.

Você sabia que o Brasil ocupa o quarto lugar em casamento infantil no mundo inteiro? Aliás, sugiro que leiam esse estudo da Plan International. Não se trata de uma opinião pessoal ou moralismo de minha parte, mas de uma urgência em tirar a discussão do campo "se o Código Penal não me pune, então eu vou fazer", para entrar no aspecto protetivo da juventude e se perguntar quais impactos um namoro entre adultos e adolescentes geram na vida dessas meninas, meninos e menines.

Como psicóloga e educadora, entendo que essa resistência ao debate é uma forma de se proteger do fato de que você percebeu que, em alguma medida, nós adultos temos nos beneficiado do poder que exercemos sobre corpos infantojuvenis, mas espero que avancemos para o próximo estágio e coloquemos nossas energias na transformação do Brasil em um lugar seguro para ser menine, menina e menino.

*A linguagem neutra, ou linguagem não binária, propõe uma modificação na língua portuguesa para incluir pessoas trans não binárias, intersexo e as que não se identificam com os gêneros feminino e masculino.