Topo

Elânia Francisca

A primeira menina que eu odiei

iStock
Imagem: iStock

Colunista do UOL

13/11/2020 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Eu não lembro ao certo a idade que eu tinha quando comecei a pegar birra dela, só sei que eu era muito pequena. Arrisco dizer que talvez tivesse entre 6 ou 7 anos.

Eu não a odiei assim de cara, comecei aos poucos. Fui aprendendo devagar a encontrar defeitos em tudo que essa menina fazia, dizia e até mesmo pensava. Minha raiva era tanta que, até quando ela estava quieta, era insuportável aceitar sua presença no mundo.

A primeira menina que eu odiei me parecia feia, desajeitada, chorona, triste e, por vezes, eu não entendia como ela conseguiu ter amigas sendo tão insossa.

Mas eu não gostava de odiá-la, me fazia mal porque eu queria muito ser amiga dela. Até tinha dias que eu queria brincar com ela, ficar feliz com a presença dela, mas eu não dava conta dessa aproximação.

Certa vez, depois da escola, todas as meninas decidiram brincar de ser paquita do programa da Xuxa (típica brincadeira de muitas meninas do começo dos anos 90). Eu sabia que a primeira menina que eu odiei não tinha o perfil, as outras meninas concordaram e, para mantê-la na brincadeira, pediram para ela fingir ser a câmera.

Ela aceitou sem contestar. Dobrou o braço, colocou a mão na orelha e fingiu que seu cotovelo era a lente que filmava as paquitas dançando "É tão bom, bom, bom, bom... Quem quer bombom, bombom".

Ela sorria por fora, mas dava para ver que ela não estava se divertindo como as outras pareciam estar. Eu perguntei: "Por que você não diz que quer ser uma paquita?". Mas ela só fez chorar! Ela me irritava profundamente.

Conforme o tempo foi passando, meu ódio por ela aumentava e comecei a julgá-la. Descobri que todos riam quando eu a ridicularizava. Eu zombava de suas pernas finas, de seu cabelo volumoso, da casa e do bairro onde ela morava. Falava mal dela para os meninos que passaram a me aceitar em seu grupinho justamente porque eu era muito engraçada quando falava dela. Ela chorava escondida.

E assim seguimos nos desenvolvendo, passando da infância para a adolescência. Eu a odiava e ela passou a me odiar também.

Um dia, em 1998, entrou em nossa sala de aula uma professora de história chamada Maria Vilani (uma mulher referência em educação no Grajaú, região onde eu cresci). Ela olhou para toda a turma, aproximou-se da menina que eu odiava, segurou seu queixo bem de leve e disse: "Que linda!".

Eu achei que era chacota. Aquela menina era ridícula! Quem estava em volta, riu baixinho. Acho que duvidaram da beleza da menina, assim como eu também duvidei.

A aula com a professora Maria Vilani foi fantástica. Ela até cantou um rap sobre o Primeiro Reinado. A sala toda aprendeu a cantar também.
Cheguei em casa, contei para minha mãe, de um jeito cômico, que a professora havia chamado a menina de "linda", vê se pode? Ela disse que concordava com a professora e que eu deveria concordar também.

De noite, meu pai chegou do trabalho, tomou banho e foi pentear seu bigode enorme no espelho. Eu parei ao seu lado e foi aí que vi. Vi o que a professora viu, o que minha mãe viu. A menina linda que eu odiei por tantos anos. A primeira menina que eu odiei morava no espelho. A primeira menina que aprendi a odiar fui eu mesma.

Dedico este texto a todas as meninas do Projeto Meninas Com Ciência do Extremo Sul de São Paulo que descobriram que são lindas e sabem o quão é revolucionário para meninas e mulheres estar em paz com o espelho.