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Elânia Francisca

Crianças, adolescentes e questões que rompem a dureza do cotidiano

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

06/11/2020 04h00

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Quando eu estava na sexta série do ensino fundamental, uma professora contou à turma aquela história do sapo na água fervente. Você já ouviu? Trata-se de um conto que diz que, se uma pessoa colocar um sapo dentro de uma panela com água para ferver, ele adaptará a temperatura de sua pele ao ambiente até que a água ferva e ele morra cozido, sem perceber.

Junto com essa memória, também trago um trecho daquele texto da Marina Colasanti chamado Eu Sei, Mas Não Devia, em que ela fala:

"A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.
E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração."

Eu poderia usar este espaço para falar do quanto estamos como os sapos, paradinhos sem perceber que a água está esquentando e, em breve, vai nos matar. Eu poderia dizer que a gente parece estar acostumado a ver e viver os desdobramentos do genocídio, das violações de direitos de mulheres, crianças, adolescentes e tratar isso como "normal, do cotidiano".

Mas resolvi falar sobre aquelas pessoas que não se acostumaram, que expõem seu ponto de vista e sempre trazem questões filosóficas importantes para refletir sobre o mundo: as crianças e adolescentes.

Essa é a parte do texto que você diz: "Afff!". E, para mim, está tudo bem, porque eu e você sabemos o quanto nossa sociedade valida e valoriza reflexões que vêm de adultos e pouco observa as potências infantojuvenis. A gente quase sempre é pego de surpresa quando uma criança pergunta algo que nós nunca tínhamos parado para pensar, não é?

Eu não quero me alongar, mas proponho um exercício simples: olhem de forma mais sensível para as revoluções que são realizadas por crianças e adolescentes, aprendam algo com elas. Não estou dizendo para promovermos uma atividade lúdica de desenho, pintura ou algo do tipo com eles (embora isso também seja bem divertido), mas que olhemos para aquelas perguntas que eles fazem e que não sabemos responder, porque estamos acostumados ou fervidos.

Eu me lembro de uma história em que uma criança perguntou para um adulto: "Vocês não têm vergonha de deixar as crianças com fome e morando na rua? Por que elas não estão em casa?". Essa é uma pergunta que merece reflexão.

Nós não temos vergonha de ver crianças em situação de rua? Por que elas não estão em casa? Elas têm casa? Por que nem todo mundo tem casa? Podemos responder a essa pergunta com sinceridade: "Sim, eu tenho vergonha. Não sei o que fazer a respeito". A partir daí podemos criar um processo reflexivo juntos e, inclusive, falar com as crianças sobre desigualdade, injustiça social.

Certo dia, uma adolescente de 13 anos, comentou: "Eu acho que se vocês adultos fossem mais abertos para falar sobre sexo com a gente, nós teríamos informações mais verdadeiras sobre o assunto". Eu concordo com ela! Proponho que escutemos as crianças e adolescentes, esses sapinhos que ainda não caíram na panela e que estão nos dizendo: "Ei, você reparou que essa água está fervendo?".

Já falei sobre adultocentrismo em outro texto e também sobre o quanto muitas de nós, pessoas adultas, temos dificuldade para compreender o que é garantia de direitos infantojuvenis, já que, muitas vezes, nossa própria infância foi permeada por violação de direitos, justamente pela inexistência de uma lei como o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Então, proponho que nos coloquemos no lugar de aprendizes e busquemos construir conhecimento com quem nasceu depois dos anos 2000.
Proponho que escutemos quem ainda não se acostumou com os números e com a guerra...