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Elânia Francisca

Cultura de Cura: como a periferia produz saúde com pilares como autocuidado

Atividade de autocuidado no extremo sul de São Paulo (SP) - Lidia Sena/A Bordar Espaço Terapêutico
Atividade de autocuidado no extremo sul de São Paulo (SP) Imagem: Lidia Sena/A Bordar Espaço Terapêutico

Colunista do UOL

14/08/2020 04h00

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Quando eu era criança e tinha dores de barriga, minha mãe dizia que tomar o chá de boldo sozinho não iria me curar, tinha que ter o carinho em volta do umbigo. Quando eu me resfriava, ela preparava um caldeirão com ervas para inalação e ficava o tempo todo ao meu lado, dando tapinhas em minhas costas e cantando bem baixinho.

Me lembro das idas periódicas à casa de uma senhora do bairro e das folhinhas passando no meu rosto enquanto a benzedeira sussurrava algo que eu não entendia, mas que gerava uma sensação de calmaria e cócegas no ouvido. Na casa da benzedeira, até a mais espoleta das crianças ficava quietinha e atenta aguardando sua vez de ser benzida.

Essas histórias sobre massagens, chás, inalações e benzimento fazem parte de minha memória afetiva sobre acesso à saúde e sobre ancestralidade. Aliás, boa parte das pessoas de periferia também têm lembrança desses e outros processos de cuidado que sempre foram utilizados por nossas matriarcas para tratar de nossos corpos e emoções.

Ouso dizer que Cultura e a Saúde sempre estiveram interseccionadas nas práticas de cuidado realizadas por pessoas periféricas —com destaque para as produções de conhecimento em saúde vindas de mulheres negras.

E quando falo de Saúde, não estou falando somente dos momentos em que nossos corpos adoecem, também falo da Saúde sendo gerada nas rodas de viola, bateção de laje ou nas reuniões de tapué no domingo à tarde. As crianças brincando nas ruas de nossos bairros, também promovem saúde, porque saúde é coexistência.

No A Bordar Espaço Terapêutico —local em que eu trabalho e que tem o objetivo de pensar e valorizar os saberes periféricos em saúde — nós temos dialogado sobre a importância da Cultura de Cura que é produzida pela periferia há muito tempo. Para nós, a Cura não é um lugar que podemos chegar, mas um caminho que vamos construindo a cada instante, tendo sempre como pilares a Ancestralidade, a Coexistência e o Autocuidado.

Não que precisemos da validação de algum órgão para dizer que nossa Cultura Periférica produz saúde, mas quero ressaltar que a OMS (Organização Mundial de Saúde) também informa que vida saudável está para além da ausência de doenças físicas. Saúde é bem-estar integral, é a qualidade de vida da pessoa toda, e não somente seu corpo funcionando e coração bombeando sangue para os órgãos.

Pensar saúde é pensar sobre o acesso aos direitos humanos e aos espaços que produzem reflexão, coexistência e autocuidado.
Saúde, quebrada!