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Cristiane Segatto

REPORTAGEM

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Após a covid, cirurgião tenta recuperar a força da mão para voltar a operar

O cirurgião ortopedista Marcelo Abdalla Khouri ficou 26 dias intubado e agora luta contra as sequelas que a covid-19 deixou - Arquivo pessoal
O cirurgião ortopedista Marcelo Abdalla Khouri ficou 26 dias intubado e agora luta contra as sequelas que a covid-19 deixou Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

07/04/2021 04h00

A covid-19 tem obrigado o cirurgião Marcelo Abdalla Khouri, de 52 anos, a dar tempo ao tempo. Depois de 26 dias de intubação e dois avisos da equipe médica para que a família se preparasse para o pior, o processo de reabilitação exige paciência. O corpo não respeita relógios externos. Segue seu ritmo ao sabor dos estímulos que recebe.

Marcelo obedece, disciplinado, com uma meta clara: recuperar os movimentos finos da mão direita. Sem a perfeita sincronia dos dedos, ele não pode voltar a operar. Até novembro do ano passado, o cirurgião reparava ombros lesados pelos excessos contemporâneos.

Suas mãos reparavam estragos da má postura, lesões por esforço repetitivo provocadas pelo trabalho ou pelos abusos esportivos. Uma vez por mês, ele viajava ao Pará para operar uma fila de trabalhadores com ombros em frangalhos.

A cada estada de uma semana em Parauapebas, onde fica a mineradora Vale, fazia cerca de 20 cirurgias. "Os funcionários trabalham com tratores e caminhões que têm alavancas do tipo joystick. Esses movimentos de repetição dos braços acabam comprometendo os ombros", diz.

Na última jornada, no final de novembro, percebeu que estava febril quando chegou ao Pará. Na volta a São Paulo, teve dificuldade para respirar no avião e foi direto ao hospital. A tomografia de tórax revelou comprometimento de 75% do pulmão. Foi internado e, pouco depois, intubado.

A loteria

cirurgião ortopedista Marcelo Abdalla Khouri - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

"Por ser médico, sabia que a intubação era uma loteria", diz Marcelo. Ele se salvou, mas teve várias complicações, entre elas insuficiência renal e uma grave infecção. Quando recobrou a consciência, percebeu que não conseguia controlar o tronco para ficar sentado. Era preciso ser carregado.

"A doença me consumiu. Perdi dez quilos, principalmente de massa muscular", afirma. Ele começou a fazer fisioterapia no hospital e continuou em casa após a alta, no início de janeiro. Felizmente, conseguiu uma vaga para se tratar em um centro de reabilitação: a unidade Osasco da AACD.

Para alcançar o objetivo de recuperar a rotina normal, segue uma jornada intensa: fisioterapia aquática duas vezes por semana, fisioterapia convencional quatro vezes por semana, terapia ocupacional três vezes por semana e acompanhamento psicológico uma vez por semana.

A alta foi uma vitória, mas a reabilitação é uma segunda batalha. Marcelo ainda sente fraqueza muscular. Anda com dificuldade. O pé direito não faz todos os movimentos. "Não consigo ficar em pé por muito tempo. Canso facilmente. A parte respiratória melhorou, mas está longe de ser normal", diz ele.

A espera

cirurgião ortopedista Marcelo Abdalla Khouri - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Segundo Marcelo, o comprometimento dos movimentos da mão pode ter sido causado pelo posicionamento durante a intubação. "Fiquei de barriga para baixo para conseguir jogar mais oxigênio para dentro do pulmão", diz. "Provavelmente colocaram minha testa apoiada na mão direita. Isso pressionou o nervo e ele parou de funcionar", afirma.

Por enquanto, a mão treme. Fazer o movimento de pinça com os dedos é difícil. O médico não consegue mover o pulso para fora. A rotação é incompleta. A força no braço e no antebraço diminuiu. Não é possível sustentar o braço para cima por muito tempo.

"Existe memória muscular. O nervo não foi rompido e vai voltar a funcionar. Minha principal preocupação agora é saber quando vou trabalhar como antes. Estou atendendo no consultório, mas os procedimentos vão ter que esperar. Isso angustia".

Marcelo não dá moleza ao corpo e tenta se superar a cada dia. Não gosta dos movimentos repetitivos da fisioterapia e da terapia ocupacional, mas mantém a disciplina. "Tudo isso é chato, mas faço para conseguir voltar a operar. "É fundamental recuperar a firmeza e a destreza da mão. Em uma cirurgia, não posso falhar", diz

Na pele de quem conhece os estragos da covid-19, Marcelo manda um recado aos que andam sem máscara. "Nas formas graves, a covid é devastadora. Ela arrebenta a pessoa. Não escolhe rico ou pobre. Compromete pulmão e vários sistemas. Uma coisa vai desequilibrando a outra. Para os médicos, conseguir equilibrar isso é muito difícil", diz.

O esforço

Os desafios continuam. "Quando Marcelo começou com a gente, estava usando andador e tinha a marcha desorganizada. Com as atividades, passou para muleta e hoje usa apenas uma bengala. Dentro de casa, consegue andar até sem apoio", afirma a fisiatra Ana Beatriz Proença Tarran, da AACD.

"Ele é cirurgião e estava bastante preocupado. Não podia ficar com a mão mais ou menos", diz Ana Beatriz. "Eu dizia: calma, isso vai melhorar".

No início da pandemia, a fisiatra passou cerca de quatro meses no covidário do Hospital das Clínicas, em São Paulo. O que mais chamou sua atenção foi a rápida degradação da força muscular dos pacientes.

"A partir dos 40 anos, a perda muscular na população geral é de 1 a 3% ao ano", diz a fisiatra. "Alguns estudos revelam que os pacientes graves de covid-19 chegam a perder de 2 a 3% ao dia. Em dez dias, a pessoa pode perder 30% de sua massa magra. É impressionante", afirma.

"Um dia eu queria avaliar a força de uma paciente que tinha saído da intubação. Pedi que ela apertasse meu dedo. O esforço para conseguir fazer isso foi tanto que ela começou a dessaturar (sofrer queda de oxigenação) na minha frente", afirma.

Muitos dos atingidos pela covid-19 também podem sofrer mudanças cognitivas e emocionais, como alterações de raciocínio, julgamento e de qualidade do sono. Em centros de reabilitação como a AACD, o atendimento psicológico é fundamental para avaliar essas perdas e ajudar na recuperação.

O paciente não é o único a viver a barra pesada da covid-19. A família sofre junto. "Minha mulher esteve ao meu lado o tempo todo e meus filhos, de 17 e 20 anos, amadureceram demais com essa experiência", diz Marcelo.

"Estive, duas vezes, a ponto de morrer em poucas horas. Não posso reclamar de dificuldades agora", afirma o cirurgião. "Está bom demais".

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