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Cristiane Segatto

REPORTAGEM

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Um acordo para ampliar o acesso dos pacientes a remédios de alto custo

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

17/03/2021 04h00

Nada é mais urgente hoje no Brasil do que interromper a matança provocada pelo vírus do desgoverno. É tarefa para ontem, sob risco de não haver amanhã. Os 11 milhões de infectados pelo Sars-CoV-2 e as mais de 280 mil histórias interrompidas bestamente em um ano de vida fácil para o coronavírus não deixam dúvida disso.

A pandemia se impôs como prioridade máxima na saúde, mas ela não aliviou a necessidade de atenção e tratamento de todas as outras doenças. Elas seguem acarretando sofrimento e morte e elevadas despesas aos governos e seus cidadãos e aos planos de saúde e seus beneficiários.

Um dos exemplos é o das doenças raras. Embora atinjam uma pequena parcela da população (65 pessoas a cada 100 mil), elas consomem grandes fatias dos orçamentos da saúde. O desenvolvimento dos raros medicamentos para essas doenças envolve alto investimento em tecnologia e estudos clínicos com poucos pacientes.

Isso resulta em lançamentos caríssimos. Grãos de esperança ao custo de milhões de reais por paciente. Para ter acesso a eles, a maioria das famílias entra com ações na Justiça contra os governos ou os planos de saúde.

A judicialização eleva ainda mais o custo para quem financia o sistema. No caso, todos nós, contribuintes ou participantes de planos de saúde. Quando o juiz manda, os governos ou as operadoras são obrigados a fornecer a droga, mesmo sem ter a garantia de que ela trará os benefícios esperados.

É uma situação insustentável. Está em curso uma tentativa de construir uma saída mais racional para ampliar o acesso dos pacientes aos medicamentos de alto custo. E, ao mesmo tempo, dividir o ônus da incerteza dos resultados entre o vendedor e o pagador. Trata-se do acordo de compartilhamento de risco (risk sharing agreements, em inglês).

Afinal, quem ganha com isso?

No início de março, o deputado Eduardo da Fonte (PP-PE) apresentou um projeto de lei que cria o acordo de compartilhamento de risco para a incorporação de novas tecnologias em saúde no Sistema Único de Saúde (SUS).

Esse é um projeto de claro interesse da indústria farmacêutica, mas ele também pode ser vantajoso ao Ministério da Saúde (por reduzir custos) e aos pacientes (por ampliar o acesso a novos medicamentos).

"O compartilhamento de risco foi criado para incorporar medicamentos ou procedimentos (nas listas do SUS ou da saúde suplementar) quando ainda existem deficiências na defesa do benefício deles por parte dos fabricantes", diz o pesquisador Daniel Sousa, autor de um artigo sobre o assunto, publicado no Jornal Brasileiro de Economia da Saúde.

"Esse tipo de acordo é importante quando a parte que quer comprar tem dúvidas se o investimento vale a pena", afirma Sousa. O compartilhamento de risco é uma forma de a indústria provar que o medicamento é efetivo.

O paciente recebe a droga. Se ela não for efetiva, o Ministério da Saúde ou o plano de saúde não paga ao fabricante e pode encerrar o contrato. Por outro lado, se o medicamento oferecer o resultado esperado, a parte compradora paga pelo medicamento e o inclui nas listas de fornecimento.

Em dissertação de mestrado defendida na FGV-SP, Sousa detalha os benefícios e as dificuldades da adoção do compartilhamento de risco no Brasil. Durante a pesquisa, ele entrevistou 25 gestores e formadores de opinião em saúde de diversas instituições, como Ministério da Saúde, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Insper, Interfarma e várias operadoras de planos de saúde.

"Nenhum medicamento funciona em 100% dos pacientes, mas hoje o ônus de pagar pelo produto e de assumir o risco de ver se ele vai funcionar ou não é todo da fonte pagadora. Quem vende está em uma situação bem mais confortável: só tem a responsabilidade de entregar o produto", afirma Sousa.

"Quando a indústria sabe que o medicamento é bom, ela prefere fazer um acordo de compartilhamento de risco para conseguir incorporar um remédio que talvez nunca fosse adotado pelo SUS ou pelos planos de saúde de outra forma", diz Sousa.

Chegar a um acordo nem sempre é fácil

Uma das principais dificuldades para a adoção do compartilhamento de risco é a seleção do paciente correto, aquele que, de fato, pode ser beneficiado pelo remédio em questão. O segundo obstáculo é o acompanhamento isento dos resultados do tratamento em cada paciente. Ele precisa ser avaliado por uma entidade sem qualquer vínculo ou interesse relacionado à compradora ou à vendedora do produto.

Acompanhar esses pacientes em todo o Brasil custa caro. Quem está comprando o remédio não quer pagar para fazer a avaliação. Quem está vendendo também não. Além disso, faltam instituições preparadas para atender esse perfil de paciente em todo o país. Em algumas doenças raras, há escassez de especialistas.

"Ainda existe um buraco negro: a indústria não confia na parte avaliadora e a compradora também não confia em quem avalia. Esse acompanhamento minucioso no mundo real envolve alto custo e uma série de interesses", afirma Sousa.

"Apesar disso, o interesse do Ministério da Saúde no risk sharing é quase unânime", diz o pesquisador. Entre outras razões, porque nove dos dez medicamentos mais demandados por ação judicial no SUS são para doenças raras. "Há um mundo nebuloso movimentado pela judicialização", afirma Souza.

É preciso fazer melhor do que isso. A regulamentação do compartilhamento de risco, proposta pelo projeto de lei, poderá garantir a legalidade necessária para que o Ministério da Saúde possa avançar nesses acordos.

Ganham a indústria, os pagadores e os pacientes em busca de alguma esperança.

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