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Cristiane Segatto

O que acontece no centro cirúrgico quando sua vida está nas mãos da equipe

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

09/12/2020 04h00

Começo pelo lado bom. Se a vida do paciente estiver nas mãos de uma verdadeira equipe (coesa, respeitosa, na qual todos têm liberdade para apontar riscos e evitar danos), há grandes chances de tudo dar certo durante o procedimento.

O problema é colocar a nossa vida nas mãos de um cirurgião egocêntrico, autoritário, daqueles que dão ordens e distribuem humilhações. Esse tipo de postura morreu de velha, mas ainda há alguns destemperados espalhando sofrimento nos centros cirúrgicos por onde passam. Não será por muito tempo.

Mesmo que esse desagregador seja um excelente cirurgião, respeitadíssimo por sua habilidade técnica, a saúde do paciente pode estar em risco. Por isso, importantes instituições de saúde têm feito esforços para mudar comportamentos que são tão prejudiciais ao doente quanto um erro técnico grosseiro.

"Estudos demonstram que refinamentos técnicos reduzem a mortalidade em apenas 10%. Aprimorar a comunicação e o trabalho em equipe durante a cirurgia melhora os resultados em até 90%", diz o cirurgião Omar Mejía, do InCor (Instituto do Coração), em São Paulo.

No final de novembro, a instituição promoveu um simpósio virtual de qualidade e segurança do paciente cirúrgico, com o objetivo de difundir a importância das chamadas habilidades não-técnicas.

Cirurgia segura

As habilidades não-técnicas são comportamentos que afetam o desempenho na sala de cirurgia. Elas se dividem em habilidades cognitivas (percepção da situação à volta e tomada de decisão) e habilidades sociais (comunicação, trabalho em equipe e liderança).

"As habilidades técnicas dos profissionais de saúde são muito importantes, mas o treinamento deles ainda dá pouca ênfase às habilidades não-técnicas. Isso precisa mudar", disse, durante o evento, o médico Roger Dias, do Brigham and Women's Hospital da Universidade Harvard, em Boston (EUA).

Nos últimos anos, surgiram várias pesquisas que procuram medir habilidades comportamentais em simulações e também no ambiente cirúrgico real. "Esses estudos demonstram que equipes com melhor desempenho em habilidades não-técnicas cometem menos erros. Com isso, há mais segurança para o paciente e desfechos (resultados) melhores", afirmou Dias.

Melhoria contínua

Nos Estados Unidos, Dias realiza pesquisas no Stratus, um centro de simulação médica do hospital. Ele conta que profissionais experientes de vários hospitais da Universidade Harvard procuram o centro para fazer treinamento.

"Isso não é só para estudante. Os profissionais de saúde precisam fazer treinamento para o resto da vida. No caso das habilidades não-técnicas, isso é mais importante ainda. É o conceito de melhoria contínua", diz.

Toda cirurgia é uma história diferente. Podem surgir novos problemas de comunicação e estresse por razões inesperadas. Não há ninguém que não tenha algo a aprender sobre como se relacionar melhor com os membros da equipe. Desse entrosamento costuma resultar uma cirurgia mais segura e um paciente salvo e feliz.

"Nos simulados, não estamos interessados em saber se o cirurgião sabe extrair um tumor. Sabemos que ele conhece a parte técnica. Queremos ver o que ele faz quando ocorre uma emergência ou um erro de medicação. É importante entender como reage a situações de alto estresse", afirma.

Por que os erros acontecem

Segundo Dias, uma das habilidades mais difíceis de desenvolver no contexto dos centros cirúrgicos é o trabalho em equipe. "Muita gente ainda pensa que ser líder é dar ordens", diz ele.

O bom líder reconhece suas próprias qualidades, mas tem humildade para perceber que os outros também podem trazer contribuições importantes durante a cirurgia, independentemente do cargo que exercem.

É preciso nivelar a hierarquia e criar um ambiente de segurança psicológica para a equipe. Para o bem do paciente, é fundamental que todos os integrantes se sintam confortáveis em dizer quando percebem algo errado.

"Quando analisamos os erros que ocorrem durante uma cirurgia, observamos que, na maioria dos casos, alguém na sala percebeu que algo não estava correto, mas não se sentiu à vontade para falar", afirma Dias.

Mudança cultural

No mesmo evento, a enfermeira Ana Paula Quilici, professora da Universidade Anhembi Morumbi, ressaltou que ainda existe uma cultura muito enraizada de procurar e penalizar um culpado pelos erros depois que eles acontecem.

"Em vez de procurar o culpado, é preciso corrigir as condições que permitem que os erros ocorram. Isso é algo que também pode ser trabalhado em exercícios de simulação", disse ela.

"Coaching cirúrgico"

Nos últimos três anos, o chamado "coaching cirúrgico" vem ganhando espaço nos hospitais. Por essa abordagem, profissionais experientes observam o que acontece em ambientes cirúrgicos reais e ajudam as equipes a desenvolver habilidades não-técnicas.

"Não se trata de uma certificação que a pessoa conquista e para por aí. O coaching é uma tutoria. O coach tem uma interação direta com os profissionais no centro cirúrgico. Ele observa, julga e guia. É como ter ouvidos e olhos externos para acompanhar o que a gente faz", disse Omar Mejía. "É preciso trocar a cultura da culpa pela cultura do aprendizado e da transparência", afirma.

No próximo ano, Mejía e Dias devem lançar um projeto conjunto, batizado de Human Project, O objetivo é levar treinamento de habilidades não-técnicas e coaching cirúrgico às equipes que realizam cirurgia de revascularização miocárdica (ponte de safena) em hospitais públicos do estado de São Paulo.

"Nenhum cirurgião é uma ilha, capaz de alcançar a excelência independentemente de sua equipe ou do ambiente da sala de cirurgia. Sem uma equipe coesa e um ambiente propício, ninguém vai resolver o problema sozinho", lembrou Fabio Jatene, vice-presidente do Conselho Diretor do InCor, ao final do simpósio.

Com tantos pacientes e problemas a resolver, é bom que os profissionais atuem, de fato, como uma equipe.

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