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Cristiane Segatto

Da Disney à reabilitação: a luta de Michelle para superar sequelas da covid

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

12/08/2020 04h00

No início de março, a advogada Michelle Guerreiro, 38 anos, estava na Disney com a família. Aproveitou tudo o que um turista em Orlando tem direito: visitou quatro parques lotados, tirou foto com o Pateta, fez compras, dormiu exausta, acordou feliz.

Quatro meses depois, finalmente ela conseguiu comemorar a saída de uma clínica de reabilitação especializada em pacientes graves. Entre as férias na Disney e uma sofrida recuperação física e emocional, houve a infecção pelo novo coronavírus.

Na vida de Michelle, a covid-19 foi muito mais que uma gripezinha. A família voltou ao Brasil alguns dias após o fechamento dos parques americanos. "Não sei se peguei o vírus nos Estados Unidos ou no Brasil", diz ela.

Cerca de uma semana depois, a advogada foi internada com grave falta de ar. Passou mais de um mês na UTI e outros dias no quarto do hospital. Superou a covid-19, mas saiu com graves sequelas provocadas pela doença e pelo tratamento.

Tudo precisou ser reaprendido

Em maio, ela foi transferida para uma clínica de reabilitação. Chegou com traqueostomia (abertura na parede da traqueia para facilitar a entrada de oxigênio), alimentação por sonda, fraldas e sem capacidade motora para, sequer, girar o corpo sobre a cama.

Foi preciso recuperar o nível mais básico de autonomia. Tudo precisou ser reaprendido: respirar, deglutir, comer, falar, urinar, defecar, executar movimentos finos, caminhar sozinha e sem apoio.

"Tive momentos de desespero, crises de choro, de querer largar tudo e ir embora. Alguns procedimentos, como a aspiração do catarro, eram muito incômodos", diz Michelle. "Os profissionais da clínica foram fundamentais na minha recuperação. Não sei o que seria de mim sem o apoio deles".

Michelle, sequelas da covid - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Um longo e dispendioso processo

O fisiatra Ricardo Bocatto, coordenador da equipe multidisciplinar da clínica Humana Magna, explica por que a aspiração mencionada por Michelle é tão incômoda. "Pacientes com traqueostomia não conseguem pigarrear para tirar o catarro pela boca. Isso gera um acúmulo que atrapalha a respiração. É preciso colocar um caninho para sugar a secreção. É como colocar um dedo na garganta", diz o médico.

A história de Michelle demonstra que a luta dos pacientes graves de covid-19 nem sempre se encerra na saída do hospital. Há um longo e sofrido percurso de recuperação das sequelas.

Um dispendioso processo, inacessível à maioria dos brasileiros, que exige instalações adequadas e a dedicação de profissionais especializados (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, entre outros).

É nesse espaço, entre o hospital e a volta para casa, que atuam as chamadas clínicas de transição, como a Humana Magna. "O hospital é um ótimo lugar para cuidar do paciente na fase aguda da doença, quando é preciso fazer de tudo para mantê-lo vivo", diz Boccatto. Superada essa etapa, é preciso focar na reabilitação com equipe multidisciplinar completa - algo que a maioria dos hospitais não tem.

"O objetivo das clínicas de transição é suprir essa necessidade. Cuidamos da pessoa com sequelas para que ela possa voltar à melhor situação possível no menor tempo", diz ele.

Pacientes de covid podem ter sequelas próprias da doença, como alterações pulmonares, complicações relacionadas à trombose, fadiga, intolerância ao exercício etc. Ao mesmo tempo, também podem apresentar problemas comuns a qualquer pessoa que passa muito tempo internada: fraqueza generalizada, alterações cognitivas etc.

"Como fisiatra, não salvo ninguém"

Além dos danos provocados pela covid, Michelle sofre de fraqueza muscular generalizada provocada por uma doença genética (distrofia de Steinert). Por isso, ela teve mais dificuldade para ganhar força respiratória, voltar a tossir e a engolir naturalmente.

"Michelle partiu de um patamar abaixo de um paciente sem a doença neuromuscular. Isso fez com que a recuperação fosse mais lenta, mas o empenho dela permitiu que voltasse à vida normal", diz Boccatto.

"Como fisiatra, não salvo ninguém. O nosso objetivo é ajudar a pessoa a voltar à vida dela, independentemente do nível de adaptação necessário. Para mim, isso tem um valor absurdo", afirma o médico.

A cicatriz

A mãe de Michelle passava a semana inteira na clínica com a filha única. Nos finais de semana, era a vez do pai. "Ter o apoio deles o tempo todo foi muito importante para mim", diz ela.

Para quem passa meses acamado e cheio de restrições, pequenas conquistas assumem outra proporção. "Sentia muita vontade do estrogonofe da minha mãe, queria sair para visitar minha avó que estava doente, mas não dava", conta Michelle. "Um dia me deixaram comer pelo menos um Danette de chocolate. Aquilo foi uma grande coisa".

Em casa, Michelle usa um aparelho importado para expandir o pulmão. Segue fazendo fisioterapia motora e respiratória. Ainda tem dificuldade para subir degraus mais altos, mas já voltou a dirigir. "Fui curada graças a Jesus e muitas orações", diz ela. A cicatriz da traqueostomia é o lembrete diário de seu esforço para vencer a covid, amparado por uma equipe que soma conhecimentos para reconstruir a autonomia.

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