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Alexandre da Silva

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que o envelhecimento de Roberto Carlos pode nos ensinar?

Beatriz Damy / AgNews
Imagem: Beatriz Damy / AgNews

Colunista do UOL

08/08/2022 04h00

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Tristes cenas. Um cantor muito consagrado no Brasil e em muitos outros países agrediu pessoas que foram aos seus shows nessas últimas semanas.

Não foi apenas falar alto. Foi gritar!

Não foi pedir para que um deles, que levou sua mãe, falasse mais baixo. Foi xingá-lo!

Mandou flores, mas, da forma como fez, para um grupo de pessoas que estava na plateia, não foi para contemplá-lo. Foi jogar rosas para manter uma performance e não como um gesto de carinho, que se expressa por olhares e sorrisos trocados com quem foi lá para trazer boas lembranças do encontro com seu ídolo.

E, mesmo assim, boa parte da mídia trata esses fatos com muita complacência e até um certo silêncio. Defende suas atitudes de forma muito explícita e, na maioria das vezes, com argumentos fracos ou sem mencionar, detalhadamente, os fatos ocorridos e as versões das pessoas envolvidas.

Tem algo errado aí.

Veja só: façamos um exercício considerando que o artista não fosse o Roberto Carlos, de 81 anos. Qual seria a narrativa e a interpretação de boa parte das pessoas que o defende ou esconde suas más atitudes da vitrine das redes sociais? Vejamos algumas dessas possibilidades, caso fosse uma cantora ou um cantor ainda não tão consagrado:

Cantor grita com fã!

Cantor xinga o filho que levou a mãe para assistir ao seu show!

Cantor arremessa flores contra a plateia!

Nesse simples exercício de narrativa e de certa forma, de empatia, que significa ficar no lugar da outra pessoa e entender o ela sente, percebe-se que há um tratamento diferenciado para o cantor Roberto Carlos.

Se houve o acolhimento e a compreensão das suas atitudes em relação à postura dura e desrespeitosa com quem foi assisti-lo, consideraria justo que também acontecesse com outras cantoras e cantores que, por gestos iguais ou até menores, foram e são duramente massacrados e julgados por milhares e até milhões de pessoas.

Não quero, de forma alguma, deixar de considerar todos os sofrimentos e perdas ocorridas na vida pessoal deste profissional, mas outros profissionais também passam por grandes e impactantes problemas pessoais.

E, mais uma vez, percebemos que não somos iguais. Somos diferentes. E o problema não é a diferença, ou a presença da diversidade, ou das particularidades e preferências de cada um ou de cada uma. O problema sempre se dá, ou piora, quando, a partir das diferenças, são construídas e mantidas as desigualdades sociais que estruturam a sociedade.

Ler a opinião de especialistas do ramo da música de que o cantor está correto nas suas "agressões" é também constrangedor porque revela um comportamento de proteção e, se estivesse correto, não deveria ser uma exclusividade para esse cantor.

Roberto Carlos não foi cancelado, como ocorreu com tantos outros artistas e cantores, muito possivelmente, por uma condição de gênero, classe e cor que o privilegia e que se pode denominar de branquitude.

Para quem não conhece o termo, trarei ensinamentos da professora e doutora Cida Bento. Para ela, branquitude diz respeito a uma estrutura social que visa manter privilégios para um determinado grupo social, do qual Roberto Carlos pertence, e garante esse pacto narcísico, de autopreservação e que tenta se basear na ideia da meritocracia quando, na verdade, ocorre para a manutenção das desigualdades sociais presentes em uma instituição ou na sociedade.

A branquitude garante um lugar de segurança, de mais oportunidades e menos julgamentos das atitudes de quem está nesse grupo social. Sempre lembro da trajetória profissional do ator e diretor teatral Fábio Assunção que, por motivos outros além de saúde ou decorrente dela, cometeu atitudes que, se fosse outra pessoa, gay, gorda, pobre, com deficiência, lésbica ou de pele mais escura talvez não tivesse as diversas oportunidades para se reerguer e mostrar toda a sua competência técnica que o faz ser tão lembrado e respeitado no país.

O Brasil, que vai se tornando cada vez mais grisalho, precisa aceitar que pessoas não envelhecem da mesma forma. Muita gente envelhece pelas injustiças, discriminações e culpas por atitudes que, acredite, muitas vezes, não as fez. É assim que se entende o preconceito, que estabelece um pré julgamento e já atribui atitudes e comportamentos para a pessoa discriminada e, ao mesmo tempo, considera que outras seriam incapazes de cometer tais infrações.

Posso lembrar o caso do senhor Luiz Carlos que, em agosto de 2021, foi acusado de entrar em um mercado e roubar. Precisou tirar a sua roupa, para afirmar sua inocência. Foi chamado de ladrão e todo esse processo o adoeceu. E foi essa "permissão" não consentida de uma instituição que o culpou por algo que não fez.

Quero entender que Roberto Carlos possa não estar bem e, caso seja esse o motivo, que encontre os melhores cuidados para a sua saúde. Dinheiro e contatos ele tem à sua disposição. Mas o que quero tensionar nesse texto é: e quem não tem essas condições e cometeu um erro como esse que o cantor já repetiu, essa "falha ou esse equívoco"? Seria essa pessoa punida para sempre, por todas as pessoas e instituições?

Não vou atribuir a culpa para o cantor por essa situação de benefícios. Tudo isso só se estabeleceu porque todo um sistema operou de uma forma que conseguisse transparecer como uma "naturalidade" o menor julgamento ou sentença a algumas pessoas da sociedade.

Mas quantos julgamentos injustos ocorrem diariamente no nosso país?

Quantas pessoas que, mesmo diante de provas gravadas em alta resolução de imagem e de som que acusam a sua falha ou erro, conseguem ser inocentadas ou verem seus atos enquadrados em infrações muito leves que, a curto prazo, garantirão sua liberdade e o seu não registro na história? E o que é mais importante, o direito de seguir vivendo, aprendendo e não sofrendo financeiramente ou socialmente pelo erro?

Roberto pediu desculpas. Disse que o palavrão saiu sem querer.

Lembrando o que ele mesmo disse em 2009, quando completava 50 anos de carreira: "Não sei ser rei, só sei cantar!"

Se for para lutarmos por igualdade de direitos e justiça, que seja para todas as pessoas, sem qualquer distinção.