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Alexandre da Silva

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Reconectar-se com a própria ancestralidade traz vitalidade e completude

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

01/08/2022 04h00

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Elô é mais que uma filha. É uma das pessoas com quem mais aprendo no mundo e com quem mais repenso minhas atitudes. Foi com ela que aprendi a ser pai. E ela, vira e mexe, reforça a nossa essa relação e me põe nesse "lugar" que escolhi estar e que muito me alegra, mas que também traz preocupações:

- Você é meu pai e precisa chamar a minha atenção!

- Você é meu pai e é por isso que estou falando assim com você!

- Não, não tenho medo porque você é meu papai!

Estávamos assistindo ao filme "Moana". Elô já é especialista no assunto por tê-lo visto uma dezena de vezes, e eu pela primeira vez na íntegra. Ela, sabendo que trabalho com o envelhecimento, disse:

- Papai, acho que você pode utilizar esse filme na sua coluna! Veja só...

E aí foram riquíssimas interpretações que, para a minha alegria, demonstraram o quanto o conceito de ancestralidade já está nela, nos seus valores, no seu modo de ver a vida e até na compreensão de filmes que assiste. E esses, como sabemos, muitas vezes retratam a nossa vida real.

"Papai, Moana é uma mulher que jamais será rainha ou que se casará!" Para mim essa conclusão, ainda que não faça menção direta ao envelhecimento ou a outros aspectos da gerontologia, esse grande campo do saber, mostra o quanto houve de tranquilidade nela em afirmar, com certa alegria e até orgulho, a postura de Moana no mundo!

Sim, gostar de uma personagem que não se casará e não será rainha da sua comunidade ou sociedade é como pensar na própria vida sem priorizar a necessidade de estar com outra pessoa para se sentir plena, realizada e bem-sucedida, na perspectiva dos valores vigentes na nossa sociedade.

Derruba-se o mito da cara-metade, o mito de que só se é feliz quando se torna rainha ou rei (que, simbolicamente, pode ser da casa, do trabalho ou da escola).

E princesas, pelo que aprendi nos contos e outras histórias que li, e também nas conversas com a Elô, sempre tiveram uma vida mais animada e livre quando comparada às rainhas. E esse valor ancestral, da busca pela liberdade, que é visto no filme, é muito importante para os dias de hoje.

Um mundo extremamente competitivo, que valoriza sempre o campeão, o número 1! Fico aqui imaginando em como seria incrível um mundo repleto de mulheres princesas envelhecendo com essa liberdade de espírito!

Vale lembrar aqui que tivemos, em um passado recente, a criação de uma escola que ensinava meninas a serem mulheres recatas e do lar, que muitas religiões ou famílias reforçam que mulheres jamais poderão ser iguais aos homens, que cabe ao homem conhecer o mundo, e as mulheres, quando possível e não tão cansadas dos afazeres domésticos e da maternidade, acompanharem o êxito de seu companheiro e liberdade dele para ir e vir.

Em tempo: as princesas que Elô e eu falamos são aquelas que deixam a coroa cair e não pegam, que gostam de correr, de brincar com todas as crianças, sem distinção de gênero, cor da pele e classe social. E Elô traz para essa conversa outras personagens de outros filmes, como Tiana, do filme "A Princesa e o Sapo" e a princesa Mérida, do filme "Valente".

E, na perspectiva do envelhecimento, noto que muitas pessoas que envelhecem e percebem que não serão mais a "rainha ou rei" e que também não serão o número 1, passam ter um certo desapontamento com suas conquistas ou começam a desvalorizá-las.

Deixam, muitas vezes, de considerarem o lugar de onde saíram, o ponto de partida das suas vidas para hoje serem ou estarem em determinadas situações de vida, seja financeira, familiar, social e afetiva.

A avó de Moana, Tala, é a personagem que mais me encanta nesse filme porque, com maturidade e sabedoria, consegue transmitir valores importantes para a constituição e fortalecimento da personalidade e caráter de sua neta.

Tala mostra a importância da neta para a tribo de uma forma que nem os pais da personagem central são capazes de transmitir. São gestos, olhares, atitudes e momentos de silêncio ao longo das conversas que, só quem sabe da vida, consegue utilizá-los com tamanha proeza e competência.

Elô também trouxe reflexões sobre como acreditar na permanência das pessoas nas nossas vidas para depois da morte física. Aqui vale trazer um pouco da filosofia de certos povos africanos que só consideram a pessoa como morta quando ninguém mais se lembra dela ou conta algum fato que a envolve.

E isso pode durar gerações ou pode nunca acontecer, mantendo-a viva sempre na memória e em situações do cotidiano de quem ainda se lembra dessa pessoa.

A raia, na qual a avó Tala se transforma, acompanha Moana em momentos importantes do filme. Traz segurança, motivação, acalanto e força. E será que quanto mais envelhecemos, mais deixamos de procurar essa conexão com os nossos mais velhos e nossas mais velhas?

Falo daquelas pessoas das quais lembramos e, só de fazê-lo, já nos sentimos diferentes, mais presentes no tempo agora e não mais visitando o passado, com muito saudosismo, ou sonhando com um futuro incerto e sem muitas expectativas positivas.

Percebo que há um grupo de pessoas mais jovens e adultas que começam o movimento de aproximação com sua ancestralidade. São pessoas que vão em busca de conversas com os seus mais velhos e mais velhas, que procuram saber sobre a cultura que pais e avós têm ou tiveram e a sensação de felicidade e de completude ali presentes.

E mais: começam a questionar algumas práticas e saberes praticados no mundo atual, como no seu local de trabalho, nas relações sociais e nos espaços de aprendizagem.

Atualmente, não percebo tantas pessoas mais velhas enaltecerem ou buscarem essa conexão com sua ancestralidade. Parece que, em um certo momento da vida dessas pessoas, um fio se solta, um laço se desfaz e há a desconexão com pessoas e histórias importantes da sua vida, que contribuíram fortemente na construção da pessoa que hoje envelheceu.

E dessa forma, pessoas que já estão grisalhas parecem perder um pouco da sua vitalidade, da pulsão de vida! E isso não é bom.

Tui, o pai de Moana, é um homem com boas intenções, mas que se mostra fiel aos valores vigentes que dificultam o crescimento do seu povo. Da forma como age, pode ser um personagem que simboliza essa desconexão com a ancestralidade que, em situações difíceis ou complicadas, ajudaria no direcionamento de ações positivas, para si mesmo e para um bem comum ao grupo do qual faz parte.

De onde viria essa desconexão de muitas pessoas de 50, 60 ou 70 anos ou mais? Da rotina de vida? Da imposição de outros valores? Da pressão para sempre aparentar ser jovem e ter atitudes e pensamentos das gerações mais novas?

Elô, também conhecida como Eloísa Rosa, ainda trouxe outras reflexões sobre Moana e o guerreiro Maui, mas não caberá mais neste texto. Mais uma vez, obrigado pela escrita conjunta, filha!

Nunca será tarde para essa reconexão, de olhar para trás e ver todas as gerações que fizeram de tudo, e até um pouco mais, para que você estivesse aqui, comigo e com tantas outras pessoas que te querem bem!

E aí, lembrou de alguém?