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Alexandre da Silva

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

As injustiças na vida de pessoas idosas que a pandemia escancarou

O bailarino e coreógrafo Ismael Ivo, que morreu de covid-19 - Reprodução / Instagram
O bailarino e coreógrafo Ismael Ivo, que morreu de covid-19 Imagem: Reprodução / Instagram

Colunista do UOL

03/05/2021 04h00

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Injustiça é uma das piores sensações que acometem o ser humano. Gera pensamentos ruins, desesperança e tristeza em relação ao mundo, às pessoas, à sociedade, às leis e até aos valores éticos vigentes da época.

Em tempos de pandemia, as mortes injustas das pessoas idosas também aumentaram. Uma das mais recentes é a morte do bailarino, diretor e coreógrafo Ismael Ivo, ainda nos seus 66 anos de idade e com muitas possibilidades de ensinar, aprender e contribuir para a cultura brasileira e mundial, já que possuía uma carreira internacional consolidada de muitas décadas.

Ismael Ivo teve uma carreira brilhante no exterior e participou de movimentos sociais importantes no Brasil em prol dos direitos humanos, principalmente pela luta antirracista. Em 2017, ficou à frente do Balé da Cidade, o corpo de baile do Theatro Municipal de São Paulo e foi acusado de assédio, mas foi inocentado após ser demitido. De lá para cá foram dois AVCs, contaminação e morte pela covid-19.

Anyky Lima, ou vó Anyky, sempre lutou pelo seu desejo de ser mulher trans e, aos 65 anos, nos deixou após um legado de resistência e luta pelos direitos para a população LGBTQI+. Foi presa diversas vezes, principalmente, no tempo da ditadura.

Anyky Lima - Reprodução - Reprodução
Anyky Lima
Imagem: Reprodução

Ela entendia as vantagens de ser uma pessoa branca e se compadecia da injustiça que sempre aconteceu contra as pessoas LGBTQI+ negras. Sofreu as discriminações causadas por alguns profissionais da saúde e também por pessoas LGBTQI+ jovens.

Dividia sua casa com outras pessoas trans que não tinham onde morar. Ultrapassar os 60 anos sendo uma pessoa trans é um fato não tão comum no nosso país, infelizmente. E ela sabia muito bem disso. Terminou sua trajetória ainda desejando que pais acolhessem melhor seus filhos e filhas LGBTQI+.

O tempo para a aplicação da vacina foi injusto com o ator João Batista Acaiabe, exímio contador de histórias, um griot por excelência, que já brincou com minhas filhas nas atividades que realizava nos Sesc da capital de São Paulo, e que sempre será o melhor intérprete do personagem Tio Barnabé.

Foi também professor de teatro e locutor, esse já a partir dos seus 16 anos. Atuou no movimento negro e fez trabalhos com jovens da antiga Febem. Testou positivo quando iniciou a vacinação para a sua faixa etária. Perdemos uma personalidade de extrema importância para a nossa cultura brasileira. Mas essa demora para tomar a vacina e evitar a morte por covid-19 não fez somente ele de vítima, infelizmente.

Um griot é um indivíduo que na África Ocidental tem por vocação preservar e transmitir as histórias, conhecimentos, canções e mitos do seu povo.

Madalena Leite, 64, travesti e ex-vereadora foi morta brutalmente com lesões na cabeça decorrentes do uso de facão, no município de Piracicaba (SP). Há fortes indícios de que havia uma luta pela liderança no bairro onde residia.

Sua morte, infelizmente mais uma idosa negra, retrata as violências que só aumentaram contra as velhas e velhos em tempos de pandemia. Senhora Madalena foi a primeira travesti eleita no município de Piracicaba. Merecia homenagens, ser nome de rua, virar nome de prêmio, enfim, merecia os holofotes de uma vencedora, mas nada disso ocorreu.

E o registro dessas injustiças, a partir da notificação dos indicadores de mortalidade ou de adoecimentos, ainda pode ter sua invisibilidade aumentada dadas as sistemáticas ações de omissão e pouca divulgação dos dados de violência ocorridas desde março de 2020.

Ainda há muitas pessoas idosas que sofrem com as injustiças. Uma das mais cruéis seja para o homem que trabalhou a maior parte da vida e, ao se aposentar, ganha um selo simbólico, invisível, mas muito dolorido de inválido, que não serve mais para fazer o que talvez faça de melhor.

É certo que outros conseguem estabelecer novos planos de vida, mas a grande maioria dos idosos homens adoece porque aprendeu a trabalhar e ninguém os acompanhou ou orientou de que essa atividade poderia cessar e de que outras precisariam ser pensadas e praticadas e de que precisaria estar pronto ou ser preparado para esses novos desafios e aprendizados.

Para as mulheres as injustiças também ocorrem. Muitas que sempre trabalharam fora de casa são catapultadas quase que imediatamente para as atividades domésticas, cuidar de netos e netas e, muitas vezes, do idoso que adoeceu.

João Batista Acaiabe - João Miguel Júnior/Globo - João Miguel Júnior/Globo
João Batista Acaiabe
Imagem: João Miguel Júnior/Globo

Isso pode ser uma vontade da idosa e, se assim o for, não há qualquer problema. A questão é quando essas atividades são impostas pela família. A filha pensa que agora que a mãe parou de trabalhar, dá para voltar a fazer o curso, pois será a avó quem ficará encarregada das atividades esportivas e extrassala de aula dos netos. Agora dá para passar na casa mãe para almoçar, as baladas entre os casais jovens voltarão porque agora a avó pode cuidar dos netos.

Muitas e muitos que leem este texto poderão se lembrar de alguma pessoa idosa que adoeceu ao se aposentar. Parece que a mente, o corpo e o propósito de vida entram em conflito durante um tempo suficiente para causar algum dano físico ou mental. Pode ser consequência dessas injustiças já naturalizadas e muito bem aceitas por diversos grupos sociais.

E a autonomia da pessoa idosa? E a sua vontade de explorar mais um pouco o mundo, de aprender mais, de não fazer nada, de ter mais tempo para a leitura e outras vontades que não podem ser colocadas em segundo plano ou com menos importância? A possibilidade de uma morte social causada por essas injustiças não deveria pairar nos anos que ainda estão para ser vividos por velhas e velhos do nosso país.

Há também as pessoas idosas que não conseguiram juntar um capital financeiro que daria essa tranquilidade para incluir novas atividades no seu cotidiano. É outra injustiça para quem sempre pagou impostos, recebeu menos do que merecia e precisou sempre trabalhar em troca de um salário, sem qualquer possibilidade de só fazer o voluntariado.

E agora velho, mas sem o aval da sociedade de que ainda tem vitalidade e competência, aí existe mais angústia e injustiça.

Precisamos debater o papel social do trabalho na vida das pessoas idosas e o quanto esse modelo que aposenta pessoas que trabalharam tantos anos é perigoso e causador de tantos sofrimentos.

Ainda estamos no meio da pandemia. E digo meio porque não temos a menor ideia sobre quando tudo isso irá acabar. E, além das mortes, que é o pior desfecho que podemos esperar da pandemia, outros sérios problemas acontecem simultaneamente no país, como a fome, o desemprego e a violência doméstica.

Madalena Leite foi assassinada em Piracicaba - Divulgação / Câmara de Piracicaba - Divulgação / Câmara de Piracicaba
Madalena Leite foi assassinada em Piracicaba
Imagem: Divulgação / Câmara de Piracicaba

Fica difícil para todas e todos respirarmos com alívio enquanto este cenário de horrores prevalece. Muitas das mortes que estamos presenciando são injustas. O coronavírus mostra que pessoas em maior vulnerabilidade morrem mais, por causas injustas relacionadas direta ou indiretamente ao vírus.

Há muitas situações e modos de vida de pessoas idosas que acontecem e não deveriam ainda ocorrer. As injustiças precisam dar lugar às oportunidades do bem-viver.

E, para isso, pessoas idosas precisam e merecem o direito da indignação com este cenário desfavorável à sua autonomia e desejo de sentir a justiça. Estejamos preparados para essa revolução da longevidade! Ou melhor: façamos parte dela, imediatamente!