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Alexandre da Silva

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Um Carnaval que não foi: idosas e idosos estarão com a gente em 2022?

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Imagem: iStock

Colunista do VivaBem

01/03/2021 04h00

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"Se a única coisa de que o homem terá certeza é a morte; a única certeza do brasileiro é o Carnaval do próximo ano"
(Graciliano Ramos)

Nem o escritor Graciliano Ramos sabia que um dia essa verdade absoluta seria contrariada. Em 2021 não teve Carnaval. Sim, nosso país ficou um ano sem uma de suas festas mais tradicionais, mais populares, parte de um movimento cultural que ainda vive no cotidiano de diversas pessoas de todo o Brasil.

Um dos momentos que mais gosto do Carnaval são os ensaios. Chego a pensar que prefiro estar nas quadras a ficar na arquibancada. Os ensaios têm de tudo: a comunidade, os convidados, a bateria, os integrantes das alas e as pessoas idosas que estão em todos os espaços da escola. Digo a amigos e amigas que meu sonho ainda será de conhecer todos os ensaios das escolas de samba de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Gosto de ficar ali no ensaio ouvindo a bateria. Ah, a bateria! Cada uma com sua história, seus motivos de orgulho e merecimento de notas dez! Sempre tem um mais velho ali que na função ou na colaboração corrige alguma parte, sugere novos instrumentos ou um ritmo que será sucesso. E eles fazem tudo de ouvido. Sabedoria e competência pura!

Tem as senhoras que compõem as alas das baianas! Sou suspeito para falar delas tamanha a minha admiração e encanto. Como são capazes de ficar horas desfilando com suas fantasias, cantando e girando? Isso chega a ser maravilhoso quando se pensa na capacidade funcional (já falei sobre capacidade funcional e envelhecimento aqui em minha coluna) e no quanto isso pode ser tão bom quanto várias formas de intervenção para a recuperação de funções físicas, cognitivas e emocionais. Precisamos abrir nossas possibilidades de cuidados para as pessoas idosas e também o conceito de saúde, que é também falar de culturas. E no Brasil temos uma diversidade que é tão pouco explorada e deixa de contemplar as vontades e expectativas de idosos e idosas que cresceram convivendo no Carnaval, no forró, no tango, no sertanejo e por aí vão os exemplos.

O clima intergeracional ofertado nas quadras das escolas é algo que me faz sentir em paz, já que dificilmente vou sozinho aos ensaios. Ali, crianças, adolescentes, adultos e pessoas idosas convivem harmoniosamente. E num clima de respeito à ancestralidade, ao mais velho e à mais velha. Tem risos entre pessoas que acabaram de se conhecer, têm abraços de quem é amigo do amigo de alguém, têm vizinhos que não se conheciam, têm novas amizades. Não posso me esquecer do Bloco Afro Ilu Obá de Min! Sim, um bloco de musicalidade, ritmo e beleza sem igual! Já fui acompanhando as mulheres aqui de casa, segurando filha no colo, fazendo o cordão humano, participando das festas de começo, meio e fim de Carnaval e assim me apaixonei pelo bloco. Ah, o Carnaval...

E quando os mais velhos e as mais velhas começar a dançar? É um encanto, além de uma aula de dança ali, para quem quiser aprender. São passos majestosos, são braços que entrelaçam várias vezes em um único segundo, são mãos que se encontram e se separam em perfeita sintonia. Sapatos brancos, sandálias brilhantes, chinelos, pés descalços, tudo pode quando estão ali abrilhantando os ensaios.

Mas tem uma parte que é, para mim, o encontro dos seres humanos com toda uma ancestralidade que já pisou ali na quadra: a feijoada. Aquele prato que não se come sozinho. Quem já tentou fazer feijoada para uma ou duas pessoas sabe que é impossível. É um prato para orixá, é um prato que pode ser feito com as carnes consideradas não nobres para o consumo de parte da população brasileira e, por isso, de fácil acesso a muita gente. Tem couve picada bem fininha com alho frito, feito ali na hora e o cheiro atrapalha até o mais concentrado da bateria ou da bilheteria. Vale prato de plástico, prato colorido, prato quebrado na borda, garfo de plástico ou não. O mais importante é o axé que tem ali, que foi transmitido pelo preparo realizado pelas mulheres, muitas delas idosas que transformam os alimentos de preparo num prato fantástico. Aqui falo também da importância do trabalho como papel social e não apenas uma troca de horas de trabalho por dinheiro. Infelizmente no Brasil ainda há muitas pessoas idosas que precisam trabalhar para dar conta das suas despesas diárias.

"Ilê se eu não gostasse de você
Como poderia ser
Não haveria carnaval pra mim
Ilê sem você na avenida
Não haveria mais razão a vida
Eu preferia até morrer"

(Ilê Se eu não gostasse de você. Bloco Afro Ilê Aiye. Compositor: Nilton Fernandes da Silva)

E não posso deixar de falar de Salvador. O Carnaval ainda não conheço, mas como sou dos ensaios, é transcendental ver o Filhos de Gandhi, o Ilê Aiyê, Olodum e todos os artistas que ficam tocando nas ruas. Foi no Pelourinho que vi uma idosa preta, lindíssima, que dançava ali sozinha, no meio da multidão, nos seus passos, no seu tempo, com a bolsa embaixo de um dos seus braços, ela sorria para quem olhasse para ela, não queria mais que isso. Queria sentir a música, sem medo de desequilibrar ou de que alguém a desequilibrasse. Ela era a manifestação da Beleza Negra Velha.

"Trabalhar eu trabalhei
Mas tudo o que eu ganhei
Não dá pra fantasia de rei
Chorei, lutei, entre o bem e o mal, afinal
Só tive quarta-feira de cinzas
Pro meu carnaval"

(música Fantasia de Rei, Benito de Paula)

Mas hoje, estamos sem festas e com mais de 250 mil mortes. Um fato inédito para a pandemia no Brasil é o aumento das mortes entre as pessoas com menos de 60 anos. O ano de 2021 ainda nos dá poucas perspectivas se 2022 será normal e de que os ensaios das escolas de samba e tantas outras manifestações carnavalescas estarão de volta. Isso entristece a mim e muita gente.

Nossas idosas e idosos poderão não estar no próximo Carnaval se os mais jovens ainda continuarem a festejar "o que ainda não descobri" este ano. Novos casos, muitas mortes. Morre ainda muitas pessoas velhas e, com isso, as escolas de samba e nossas famílias poderão não ter os integrantes de sessenta anos ou mais sentados à mesa, na poltrona da sala, indo para os blocos ou indo para um descanso na praia (para quem não gosta das festas carnavalescas).