UOL Viagem

28/07/2008 - 20h12

NY Times: Um mundo perdido feito por mulheres

RICHARD B. WOODWARD
New York Times Syndicate

visitbelgium.com

Klein Begijnhof (Pequeno Beguinário), em Gent

Klein Begijnhof (Pequeno Beguinário), em Gent

Se o feminismo significa um desejo por independência da autoridade patriarcal, as beguinas —uma ordem laica católica romana que surgiu no século 13 e se espalhou pelo noroeste da Europa— representaram, talvez, o mais antigo movimento feminino do mundo.

Diferente das irmandades que exigiam uma vida separada da sociedade sob voto de castidade, estas mulheres católicas buscavam santidade fora das normas monásticas. Apesar de viverem e rezarem juntas dentro de um enclave, em parte como uma forma de proteção mútua —alguns historiadores acreditam que elas se uniram após perderem seus homens para as Cruzadas, que deixavam para trás principalmente criminosos e pessoas rudes—, as beguinas não ficavam confinadas no claustro. Muitas cuidavam dos pobres e doentes fora de seus muros. O celibato por toda a vida também não era exigido. Elas podiam deixar a ordem e se casar (mas não retornar).

Cada comunidade tinha suas próprias regras, apesar de que sob égide da Igreja, e várias místicas residentes que desenvolveram abordagens extáticas à adoração. Não é de se estranhar, portanto, que ao longo dos séculos elas tenham sofrido ondas de desconfiança e perseguição como "espíritos livres" heréticos.

Traços destas mulheres notáveis e seus modos espirituais idiossincráticos podem ser encontrados atualmente nas ilhas urbanas de quietude que antes chamavam de lar. Conhecidos como beguinários, várias dezenas destes conventos ainda estão intactos (em diversos graus) da Inglaterra até a Alemanha. Há dez anos, a Unesco declarou um grupo seleto como sendo Patrimônio Histórico da Humanidade. Nenhum país possui mais beguinários do que a Bélgica (29), e uma viagem para visitar uns poucos em três cidades parecia uma forma agradável de passar um dia de primavera, especialmente dada a facilidade com que é possível se deslocar de trem naquele país conveniente.

Muros altos e tijolos vermelhos

Era promissor o fato do único exemplar remanescente em Antuérpia ficar a poucas quadras do meu hotel. Apesar dos muros altos de tijolos vermelhos sem janelas, no número 39 da Rodestraat, parecerem nada receptivos, a impressão foi dispersa após passar pelo portão principal e pela guarita vazia.

Em sua modéstia, este beguinário lembra uma faculdade de Oxford carente de verbas. Os valores burgueses de paz e ordem governam todos os beguinários, elementos que antecipam a clareza arejada do Iluminismo em vez de olhar para o sublime gótico da Idade Média.

Este espírito é especialmente aparente no beguinário de Antuérpia. Três andares de apartamentos de tijolos do século 16 dão vista para um pequeno jardim com cerca envolto por um caminho estreito de pedras arredondadas. Uma capela em um extremo completa o desenho padrão. Nas frias primeiras horas da manhã da minha visita, o arrulho dos pombos e o som das fontes do jardim eram os únicos sons audíveis.

Cada um dos 45 apartamentos tem entrada pelo pátio por meio de um alto portão de madeira marcado com o nome de um santo (Heilige Martha) ou alguma associação bíblica (Jerusalém). Em seu apogeu no século 17, cerca de 220 beguinas viviam dentro destas paredes. Atualmente há cerca de cem moradores, a maioria mulheres idosas, mas também há alguns casais aposentados. Oficialmente os apartamentos podem ser alugados por qualquer pessoa. Mas esta ainda é uma propriedade da Igreja Católica e, não oficialmente, jovens solteiros ou casais com filhos não têm chance de encontrar quartos aqui.

Os beguinários em Bruges e Gent operam de forma diferente. Para verificar pessoalmente, eu esperava viajar de trem para ambas as cidades e voltar para Antuérpia e fiquei agradavelmente surpreso ao saber pelo bilheteiro que isto podia ser feito pelo preço surpreendentemente baixo de 11,50 euros, ou US$ 18,29, com o euro cotado a US$ 1,59.

Em Bruges, para ser fotografado

Levou cerca de 45 minutos para chegar a Bruges e então 20 minutos adicionais de caminhada até o portão da frente de De Wijngaard (O Vinhedo), como este beguinário é chamado. A caminhada pelos canais e por passagens sinuosas foi um prazer por si só, e era cedo o suficiente na temporada para as ruas ainda não estarem lotadas de turistas.

Assim como em muitos outros lugares nestes populares destinos medievais da Bélgica, o beguinário de Bruges parece existir mais para ser fotografado do que qualquer outra coisa. Centenas de visitantes sacam suas câmeras para as mesmas fotos —de prédios caiados e pátios de álamos e narcisos— todo dia. Eu não fui diferente.

Desde 1937 ele se tornou um mosteiro para um pequeno grupo de freiras beneditinas. Cerca de 25 irmãs ainda vivem aqui. (Winston Churchill as incluiu em uma pintura carinhosa que fez do lugar em 1946.) Normalmente eu aconselharia pular o pequeno museu, com suas mostras relaxadas de laços feitos pelas irmãs, juntamente com a recriação de uma cozinha do início do século 20. Mas a entrada de 2 euros é uma das poucas fontes de renda pedidas ao público que cruza a ponte de pedra e o portão do século 18 gratuitamente. Eu paguei e, após a uma rápida visita, segui para a saída.

Não deixe de visitar a igreja barroca nas proximidades, uma estrutura discreta que permanece o foco da comunidade. Uma pintura sobre o altar de Santa Elisabete, padroeira das beguinas, de autoria do mestre do século 17 de Bruges, Jacob Van Oost, pai, pode ser o destaque de história da arte. Também dignas de estudo e contemplação são as dezenas de lápides embutidas no piso sob os bancos e perto da entrada da nave. As fileiras cada vez menores de beguinas podem ser mapeadas pelos séculos de mulheres que passaram suas vidas aqui, agora praticamente esquecidas pela história. A última pessoa enterrada sob estas lápides de pedra morreu em 1905.

Os beguinários eram experiências de vida comunal que funcionaram com sucesso por séculos. Mas, à medida que as opções para muitas mulheres européias se multiplicavam após o século 18, dentro da Igreja Católica e além, o número de beguinas começou a decrescer rapidamente. A Bélgica, que a certa altura contava com 94 beguinários, tinha apenas 20 em 1856; os membros da irmandade caíram em mais da metade entre 1631 e 1828. Hoje, segundo o Escritório de Turismo de Flandres, Bélgica, a ordem conta com apenas um membro sobrevivente, a irmã Marcella, de 88 anos, que vive em um asilo belga.

Em Gent, o pequeno e o velho

Dos três beguinários que restam em Gent, eu tive tempo de visitar apenas dois. O Klein Begijnhof (Pequeno Beguinário), no quadrante sudoeste da cidade, me foi descrito como talvez o mais atmosférico de seu tipo na Bélgica. Na verdade, ele foi apenas o mais triste que vi. Vândalos quebraram as janelas dos apartamentos e a porta da igreja estava trancada com cadeado. Um ar de abandono predominava em um ambiente antes próspero, que atendia indigentes e mulheres de classe média-baixa. A restauração está supostamente em andamento.

O Oud Begijnhof (Velho Beguinário) no distrito noroeste dificilmente pode ser restaurado, pois seus contornos praticamente se foram. Abandonado pelas irmãs em 1873, que o trocaram por um complexo maior fora da cidade, a área foi ocupada de tal forma por imóveis que, exceto pela igreja de Santa Elisabete e algumas poucas casas, quase nada resta de suas origens.

É uma distorção ver as beguinas como um braço de vanguarda do feminismo do século 20. Elas faziam parte de um movimento religioso, não secular. Todavia, por séculos elas conseguiram viver independentemente do presunçoso controle masculino. O legado delas merece respeito e ainda pode ser sentido nas comunidades incomuns que desenvolveram, mesmo que elas mesmas tenham praticamente desaparecido.

Por Conta Própria
Informação sobre os beguinários da Bélgica (e de outros lugares) pode ser encontrada no site da Unesco (whc.unesco.org/en/list/855). Ele não apenas lista os beguinários tombados como Patrimônio Histórico da Humanidade, mas também disponibiliza para download um extenso relatório em PDF (escrito em francês) sobre os motivos por trás da escolha deles, juntamente com vistas aéreas, mapas, o andamento das restaurações e bibliografia.

O Escritório de Turismo da Bélgica (www.visitbelgium.com/belfrybeg.htm), oferece uma lista seleta dos beguinários nas cidades belgas.

Tradução: George El Khouri Andolfato

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