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Faça um passeio pelas trilhas e montanhas do Nepal e conheça os mitos e a cultura do país

Edward Wong

New York Times Syndicate

03/03/2013 07h50

A história começa com um demônio. Séculos atrás, ele destruiu as fundações de um monastério budista que estava sendo construído no Tibete central; então o Guru Rinpoche, que tinha levado o budismo para o reino, enxotou-o para o oeste, para o interior de Mustang. Os dois lutaram entre os picos nevados, desfiladeiros e planícies da região; o mestre venceu e espalhou as partes do corpo do demônio por toda a área: seu sangue formou desfiladeiros vermelhos e seus intestinos caíram na terra que fica a leste dos despenhadeiros. Mais tarde, o povo construiria um muro de pedras de orações, o mais longo do Nepal, sobre eles.

No quinto dia da nossa caminhada, nos vimos sobre seu coração. Ali, naquela colina, o povo de Mustang tinha construído o monastério de Lo Gekar, um dos mais velhos do mundo tibetano. Um lama nos mostrou o lugar. Não vi resquícios do coração demoníaco, mas as paredes de uma sala escura, nos fundos, estavam cobertas de imagens de criaturas assustadoras, com presas e pele azul. Para os tibetanos, elas são divindades protetoras. O nosso guia, Karma, me puxou para o meio das sombras e apontou para outra parede. Apertei os olhos e vi uma estátua de Buda que tinha sido esculpida na pedra. Pelo menos foi o que pensei.

"Dizem que a imagem é natural e foi descoberta assim", disse Karma. "O povo de Mustang tem muitas histórias. Acredita em tudo, até que há espíritos em todo lugar". Mustang é um caldeirão de mitos, como descobri nos 16 dias de nossa caminhada por essa região do Himalaia, no Nepal, em setembro. Aos poucos a modernidade vai chegando ali, mas as histórias que o povo conta pouco mudaram ao longo dos séculos.

Conforme atravessei os vales e visitei vilarejos, ouvi histórias que davam vida à terra inóspita, lugar de ravinas profundas, ventos fortes e antigas cavernas. É assim desde que o reino foi unido por Ame Pal, no século 14, e as narrativas parecem tão vívidas hoje como sempre foram.

Fiquei com vontade de visitar Mustang desde que bati os olhos nela numa caminhada que fiz ali perto, no Circuito Annapurna, há doze anos. Na parte norte do roteiro fica a aldeia de Kagbeni, com seu monastério de muros vermelhos. Mais ao norte fica o desfiladeiro do rio Kali Gandaki; depois dele, vem Upper Mustang, ou o Reino de Lo, proibido para aqueles que não têm visto do governo nepalês.

Parecia que este outono era a hora certa de ir para lá. Quando criança, vi minha mãe abraçar a fé budista; mais tarde, comecei a fazer caminhadas no Himalaia em busca de algo transcendental na paisagem e nas expressões permanentes de fé. Eu estava para completar 40 anos e meu primeiro filho estava a caminho. Era hora de fazer uma peregrinação nas montanhas no encerramento de um capítulo da minha vida e início de outro.

Havia outra razão para fazer a visita naquele momento: no ano passado, por causa da onda de autoimolações que varreu o Planalto do Tibete, a China restringiu o acesso à região – que já tinha sido limitado em 2008. Para os turistas, Mustang é uma boa alternativa porque oferece uma amostra da autêntica cultura tibetana e, como grande parte do Tibete, fica no Trans-Himalaia, um deserto vasto, ao norte da cordilheira principal, que bloqueia a maioria das nuvens na época das monções que fazem chover na Índia e no Sudeste Asiático no verão.

  • Gille­s Sabri­e/The New York Times

    Vista mais detalhada de Lo Manth­ang, capital de Mustang

De acordo com as estatísticas do governo, em 2011, quase três mil turistas entraram em Upper Mustang, um aumento de 25% em relação a 2008, mas a taxa de entrada – US$ 500 para dez dias e US$ 10 para cada dia adicional – ainda afasta muitos viajantes. Entretanto, os números baixos são vistos com bons olhos pelos aventureiros que querem evitar as trilhas de Annapurna e Everest, excessivamente cheias, e por alguns moradores da região, mesmo aqueles que dizem que o governo precisa dar a Mustang uma parcela maior do que arrecada.

"A nossa terra é um dos lugares mais lindos do mundo", disse Jigme Singi Palbar Bista, príncipe do cerimonial de Mustang, "mas, se muitos turistas começarem a chegar, não vamos poder recebê-los".

Depois de uma semana no Vale de Katmandu com minha mulher, Tini, encontrei meu amigo Gilles e voamos para o norte, entre os maciços de Annapurna e Dhaulagiri. Muita gente faz a caminhada de Kagbeni a Lo Manthang, a capital murada de Mustang, ida e volta, em dez dias; nós decidimos ir mais devagar para explorar os cantos escondidos ao longo do percurso. No verão nepalês, alguns dos últimos nômades montam acampamento nos campos a oeste de Lo Manthang. É também nessa área que há picos de mais de seis mil metros esperando para serem explorados. O visto de 16 dias também nos daria tempo de ir até os vales ao norte de Lo Manthang, mais próximos do Tibete, e voltar a Kagbeni pelos desfiladeiros a leste de Kali Gandaki. No lado oriental, mais isolado, estão alguns dos exemplares mais bem conservados de arte budista tibetana nas cavernas de que se tem notícia.

Todos os dias durante a caminhada, me surpreendia com a beleza da paisagem única, diferente de tudo o que já tinha visto no Himalaia. É um lugar apinhado de desfiladeiros à volta do gigantesco vale do Kali Gandaki. As rotas de caminhada, nas duas margens do rio, acompanham os vales. Os rios mantêm um nível baixo na maior parte do ano, mas as monções nos forçaram a passar a vau pelo menos meia dúzia de vezes.

Grande parte de Upper Mustang é desolada, habitada por cerca de 5.400 pessoas e eventualmente atravessada por peregrinos tibetanos e caravanas de iaques. Entramos na área no segundo dia da caminhada. Ali, num trecho largo do Kali Gandaki, as águas correm, altas e ligeiras. Todos os nossos mantimentos estavam amarrados a três cavalos. Além de Karma, nossa equipe consistia em Gombo, um tratador de cavalos de Lo Manthang, e Fhinju, um cozinheiro sherpa.

Depois que a trilha atravessa o Kali Gandaki, sobe íngreme até a aldeia de Samar, considerada o local mais úmido e verde de Mustang. Pouco antes do pôr-do-sol, atravessamos uma passagem enfeitada com bandeiras de oração e descemos para uma pousada. Karma é de Samar e seu irmão, o chefe do vilarejo, é o dono do lugar. Todas as principais cidadezinhas de Mustang têm pelo menos uma casa onde os viajantes podem se hospedar. Os quartos possuem camas simples ou um banco com um tapete de lã grosso. Exaustos por causa da caminhada, Gilles e eu nos sentamos na cozinha para jantar, perto dos franceses. De sobremesa, a mulher do irmão fez torta de maçã com creme. Do cômodo ao lado vinha o som forte de tambores. "São lamas peregrinos", explicou Karma.

  • Gille­s Sabri­e/The New York Times

    Por todo lugar vê-se monumentos budistas, ou pequenas estupas, sobre as colinas ou no caminho que leva às vilas

Nos dias seguintes, seguimos a mesma rotina: levantar entre seis e sete da manhã, tomar o café, caminhar de seis a oito horas e voltar ao vilarejo antes do cair da noite. O interior ficava mais árido quando mais para o norte seguíamos, a caminho de Lo Manthang. As cores das montanhas – tons de vermelho, marrom e ocre – mudavam a cada dia e variavam com o movimento do sol.

Por todo lugar vê-se monumentos budistas, ou pequenas estupas, sobre as colinas ou no caminho que leva às vilas, e até mesmo dentro das cavernas, em parte para afastar os espíritos que podem fazer mal. O budismo tibetano e os mitos se misturam uns com os outros e, por sua vez, se fundem com a paisagem.

Com o finzinho das monções, chegou a época da colheita. Os moradores encheram os campos cortando as hastes douradas de cevada - a temporada, porém, trouxe mais histórias de maldições, maus espíritos e infortúnios que poderiam afetar as pessoas. Karma disse que as passagens altas que ligam Mustang à árida terra de Dolpo, a oeste dali, não podiam ser cruzadas até que a colheita terminasse, caso contrário ela terminaria em desastre. O mesmo valia para os picos sem nome que se levantam a mais de seis mil pés a oeste de Lo Manthang. Um dia, desafiando o destino, escalei um. Quando cheguei à "linha da neve", acima dos 5.900 metros, começou a cair granizo e nuvens negras se aproximaram. Resolvi descer.

Chegamos a Lo Manthang depois dessa subida e de passar duas noites acampados perto de famílias nômades, cujas barracas visitamos e com quem tomamos xícaras e xícaras de chá de manteiga. Lá, falei com o príncipe de Mustang (seu pai, o rei, tem 80 anos e estava doente há várias semanas) e visitei os monastérios de paredes vermelhas no centro da cidadezinha. Conhecemos um grupo de dezenas de moradores, liderados por um italiano, Luigi Fieni, que estava restaurando trabalhos de arte budistas no Monastério Thubchen, cujo pé-direito altíssimo é sustentado a inúmeros pilares de madeira. Suas estátuas gigantescas inspiram respeito e temor.

Depois de dois dias, partimos de novo, seguindo Karma a um lugar muito peculiar, mas praticamente escondido. Do vilarejo de Yara, nos aproximamos de uma caverna a leste do desfiladeiro de Kali Gandaki, a qual se chegava apenas através de escalada. Deixamos as mochilas por ali e partimos para a subida, usando só as mãos. Não quis pensar que, se escorregasse, teria me esborrachado a centenas de metros no fundo do vale.

Estávamos em Tashi Kabum, templo dentro de uma caverna que os moradores abriram à visitação pública há apenas alguns anos. Lá dentro, um grande monumento branco; pintadas nas paredes e no teto, algumas amostras de arte budistas mais bem preservadas que já vi. Distingui pétalas de lótus no teto; numa das paredes, o retrato de um lama de roupão vermelho. Mais enigmática era a pintura de um homem sentado, sorridente, cujo rosto se iluminava com o feixe de luz que entrava por um vão na parede.

Fhinju, o nosso companheiro sherpa, passou os dedos sobre a pintura. "Chenrezig", disse ele, abaixando a cabeça para rezar. Para os budistas tibetanos, Chenrezig é um bodhisattva que representa a compaixão. Os tibetanos acreditam que o Dalai Lama seja sua reencarnação. Ele é a principal figura dos templos budistas espalhados pela Ásia. Mesmo sendo um garoto norte-americano, vi minha mãe rezar todas as noites, em nossa sala, para a estátua de sua encarnação chinesa, Guanyin.

Ali, a anos-luz da minha infância, ele olhava para mim de novo. A fé nele tinha atravessado fronteiras e transcendido o tempo. A história ganhava um significado diferente para cada pessoa. Eu olhei em seus olhos e vi sua lenda se estendo para o futuro.

Pondo o pé na estrada

Como chegar
A maioria dos turistas que fazem trilha no Nepal entra em Upper Mustang pelo vilarejo de Kagbeni. O aeroporto mais próximo é em Jomsom, a três horas de distância a pé. Os voos para lá, a partir do resort de Pokhara, custam menos de US$ 100 por trecho. A companhia aérea e a frequência variam dependendo da estação e há muitos cancelamentos por causa do mau tempo. A vista que se tem do avião, porém, que atravessa algumas das montanhas mais altas do mundo, é de cair o queixo. A opção é pegar o ônibus para Jomsom e enfrentar 14 horas numa estrada em que há deslizamentos frequentes.

Guias
Os estrangeiros têm que pedir o visto para Mustang através de um guia individual ou agência de turismo especializada. Eu recomendo contratar um morador da região, embora não seja fácil encontrar um. Eu usei Karma Samdup (karmakurt@hotmail.com), que mora no vilarejo de Samar.

Se preferir usar uma agência de viagens ocidental, a Project Himalaya (project-himalaya.com) e a Kamzang (kamzang.com) fazem caminhadas em Mustang.

Acomodações
Praticamente todo vilarejo ao longo da rota em Mustang tem uma pensão ou casa que pode hospedar os viajantes. Um guia experiente conhece todos.