- "Documentos, por favor".
O uniforme de bigode pega meu passaporte e o abre. Folheia-o lentamente.
- "Onde está seu visto?"
- "Não tenho. Posso tirá-lo aqui?".
A cara do oficial, atrás do vidro, ganha um ar severo e, até a resposta, alguns segundos de silêncio.
- "Já foi para Israel?"
- "Não, nunca".
- "E por que você quer visitar a Síria?".
Pendurado na parede, o retrato do presidente Bashar al-Assad me fita com uma serenidade assustadora. Alguém, ao fundo, martela o teclado de um computador.
- "Quero conhecer Damasco e... Palmyra também".
O agente retoma o silêncio; continua perscrutando meu documento de viagem. O edifício da imigração está vazio. A sala, branca, é de uma frieza glacial. Lá fora, o sol do deserto.
Estou nervoso. Saí de Amã, capital da Jordânia, no começo da tarde, rumo a uma Damasco incerta. Eu não tinha o visto sírio. E li que seria difícil consegui-lo na fronteira. Dividi o táxi com um empresário iraquiano e um senhor jordaniano, careca e de bigode, que nada falava. O motorista era palestino.
Eu, por minha vez, tive sorte em ser brasileiro. Todos gostam de brasileiro nesta parte do mundo. O oficial, a feição mais leve, fecha meu passaporte e dispara:
- "Muito bem. Preencha este formulário e pague 28 dólares. E, da próxima vez que vier à Síria, tire o visto antes".
Preencho, pago, concordo, ganho o carimbo e deixo o guichê rapidamente. Deu certo. Por 28 dólares.
Um outro paísO Departamento de Estado norte-americano classifica a Síria como "Estado Patrocinador do Terrorismo". Isso mesmo; em letras maiúsculas. Diz que o país apóia organizações como o Hizbollah, o Hamas e a Jihad Islâmica palestina - todas consideradas terroristas. Uma nação-encrenca, pelo menos na visão da grande potência.
Os retratos da família al-Assad, que controla a Síria há 38 anos, estão em cada cidade, cada estrada deste território. E ajudam a enviesar a sua própria imagem: Hafez, o patriarca, e os filhos Bashar e Basil aparecem, quase sempre, envergando boinas e uniformes militares. Autoritários óculos Ray-Ban lhes adornam as faces. Um assombro.
A verdade, porém, é que, no Ocidente, são escassas as informações que nos chegam deste remoto país árabe. A Síria tem, sim, um governo controverso. Hafez al-Assad, então ministro da Defesa, subiu ao poder em 1970, após golpe de estado. Morreu em 2000 e deixou a caneta (e as forças armadas) ao filho Bashar.
Ambos nunca esconderam seu ódio a Israel. Liberdades de imprensa e de expressão, sob o comando da família, sempre foram, e continuando sendo, inexistentes. E reza a lenda que há espiões por toda a parte, prontos para delatar qualquer piada contra o governo.
Mas a Síria não é apenas um uniforme militar, ou um paletó burocrático. Sua história, mais de cinco mil anos de civilizações, está entre as mais ricas do planeta. E sobre os seus habitantes, é fácil dizer: a maioria deles é a personificação da tão apreciada afabilidade árabe.
Damasco está aí, na janela do táxi. A cidade continuamente habitada mais antiga do mundo, segundo alguns livros. Uma história perdida no tempo, mas presente, de forma etérea e concreta, na atmosfera da metrópole.
Urbe ancestralÉ final de tarde. Os minaretes da Grande Mesquita conclamam os fiéis às orações. Erguido entre 705 e 715 DC, o templo ocupa o lugar de uma igreja bizantina. Os autores do despejo: os Umayyads, tribo árabe que, entre os século 7 e 8 DC, construiu um dos grandes impérios da história. Fincariam bandeiras da Espanha até o norte da Índia. E adotariam Damasco como capital.
Saladino, o guerreiro curdo que tomou Jerusalém dos cruzados em 1187, está sepultado aqui. E a mesquita é, de alguma forma, o centro nervoso da cidade. Ao seu redor, sob as colunas do Templo de Júpiter romano, bazares vendem de tudo: colares de ouro e sacos de amendoim, café brasileiro e mate argentino, broches do líder do Hizbollah, Hassan Nasrallah, e do líder do Hamas, Ismail Haniyeh.
Mulheres de burca negra, cobertas dos pés à cabeça, cruzam as vielas com os filhos no colo. Os homens cuidam do comércio. Alguns usam o
keffiyeh, o pano árabe, quadriculado, que se fez célebre na cabeça de Yasser Arafat. Sorriem para os poucos turistas que passam e entoam, com sinceridade, um "seja bem-vindo".
No café An-Nafura, todas as noites, um senhor engraçado, chapeuzinho de Aladim, se senta em um trono e conta antigas histórias árabes. Tem nas mãos uma espada. O relato atinge o clímax e ele, em arroubo triunfal, solta um berro. O público, em uníssono, o aprova. E joga a fumaça das narguilés para o alto, que satura o ar com seu aroma doce.
Damasco já foi dominada por arameus, babilônios, persas, gregos, romanos, mamelucos, otomanos, franceses. Hoje, entretanto, é uma urbe orgulhosamente árabe. Mas não totalmente muçulmana. Mais de 10% da Síria é cristã e sua capital não é exceção à regra. Ostenta importantes igrejas e carrega a honra de ter o seu nome citado na Bíblia.
A cidade é, também, um dos principais centros de aprendizado da língua árabe no mundo. Conheci estrangeiros, muitos dos Estados Unidos, muitas mulheres, que se instalaram em Damasco especialmente para estudar o idioma.
Salaam aleikum ("que a paz esteja com você"), a forma usual de cumprimento na região, é, sem dúvida, uma introdução que fascina.
Enclave cristãoA cidade de Ma'lula, a 50 quilômetros de Damasco, é um enclave cristão no meio da Síria. Abriga belos mosteiros, lendas de milagres e o mais importante: gente que ainda se comunica em aramaico, o idioma que, acredita-se, falava Jesus Cristo.
O aramaico foi uma língua amplamente usada no Oriente Médio até meados do século 7 DC. As conquistas territoriais do islã, e a conseqüente propagação da cultura árabe, acabaram por sepultá-lo.
Ma'lula tem aproximadamente oito mil habitantes, hoje parte deles muçulmanos, muitos deles fluentes apenas em árabe. Mas o local ainda preserva seu halo de território santo. Sou acolhido pelo convento greco-ortodoxo Santa Tecla, 13 freiras, que me presenteiam com a melhor noite de sono do ano.
Dizem as monjas que Tecla foi discípula de Paulo de Tarso, mais tarde conhecido como São Paulo. Vivia no que é hoje a Turquia, e fugiu para a Síria após ser perseguida por causa de seu cristianismo. Em um episódio à la Mar Vermelho, Tecla, ao ver seu caminho bloqueado por uma montanha, rezou. E Deus abriu uma fenda no meio do colosso de pedra, para que ela passasse. Seu corpo está sepultado em uma gruta, integrada ao convento.
A tal fenda é hoje um cânion de 30 metros de altura, que serpenteia ao lado da casa monástica. E Ma'lula, em sua coleção de paisagens, constitui um belo povoado. Sua topografia é delineada por imponentes formações rochosas. Casas simples e coloridas se colocam, desafiadoras, na rota de pedregulhos que, lá de cima, parecem prontos para rolar ladeira abaixo. Montanhas nevadas, em épocas de inverno, podem ser vistas no horizonte, o branco do gelo a contrastar com as areias do deserto.
Já o aramaico é, atualmente, mais uma segunda língua do que o idioma oficial de Ma'lula. As próprias freiras do convento conversam em árabe. Mas a cidade se ergue, ainda nos dias que correm, como um legítimo recanto cristão no meio da Síria.
O reino da voluntariosa ZenobiaUma cidade que teve o aramaico como idioma oficial foi Palmyra. Localizado em um oásis a 210 km de Damasco, esse vilarejo está quase na fronteira com o Iraque. Uma latitude perigosa nos dias de hoje. Mas nem sempre foi assim. Durante um milênio, Palmyra, sob outros nomes, destacou-se como importante entreposto comercial. Produtos que vinham da Ásia, rumo ao Mediterrâneo, tinham que passar por sua jurisdição.
Recebeu seu nome atual após ser capturada pelos romanos no começo do século 1 DC. Rica, militarmente forte, e desfrutando certo grau de autonomia política, a cidade começou a conquistar. Sua rainha, a voluntariosa Zenobia, ordenou, em 270 DC, a invasão da Anatólia e declarou independência de Roma. Grande erro. Como represália, o imperador Aureliano a destituiu do trono e destruiu parte de Palmyra. A cidade, no entanto, ou o que sobrou dela, continuou sendo, por alguns séculos, um relevante centro comercial do Oriente Médio.
Hoje, Palmyra é uma coleção de ruínas, belas ruínas. Templos dedicados aos deuses Bel (associado ao sol e à lua) e Baal Shamen (associado às chuvas) ainda se mantêm eretos, no meio do deserto dourado. No alto de uma colina, o Qala'at ibn Mann, um castelo do século 16, silencioso e solitário, é o principal dos tempos de glória e decadência da cidade.
Um reino quase pacífico no Oriente MédioRecomendo a Síria a qualquer turista. O país exala história e exotismo. Mas tenho que confessar: há, lá, uma certa tensão no ar. Talvez sejam os Ray-Bans dos al-Assad. Talvez, os potenciais espiões na mesa de trás. Ou, ainda, a perigosa tensão que existe entre Damasco e Jerusalém (a Síria não esqueceu as derrotas nos conflitos com Israel no século passado. O principal deles: a Guerra dos Seis Dias, de 1967, quando perdeu as colinas de Golã para o vizinho-inimigo). De qualquer maneira, tudo agrega para a arrebatadora aventura que é viajar por este país árabe.
As coisas mudam, porém, quando eu retorno à Jordânia. O rei Abdullah 2º, sob seus bondosos olhos azuis, sorri ao lado da rainha Rania, uma linda kuwaitiana com a qual se casou em 1993. Os quatro filhos estão ao lado, frescos e felizes na foto. O próprio nome, Reino Hashemita da Jordânia, apesar de extravagante, denota uma ordem que beira o bocejo.
O país, contudo, iria me surpreender. Apesar de Amã, sua capital, não ser tão interessante como Damasco, a Jordânia ostenta dois dos lugares mais belos do Oriente Médio: Petra e o deserto do Wadi Rum. No caminho às duas atrações, uma visita a um recanto bíblico: o Mar Morto.
Moisés subiu no Monte Nebo e, lá de cima, avistou a terra prometida. Faleceu logo depois. Já Jesus Cristo foi batizado nas águas do rio Jordão, na margem que corresponde ao Reino Hashemita. E é na região do Mar Morto onde ficavam, acredita-se, as cidades de Sodoma e Gomorra --que, por pecadoras, foram, segundo o livro sagrado, destruídas pela fúria de Deus.
O Mar Morto (que, na verdade, é um lago) está localizado a 400 metros sob o nível do mar. Suas margens são o ponto seco mais baixo da superfície terrestre. E a alta salinidade de sua água impede a existência de quase todo o tipo de vida. Apenas as bactérias sobrevivem.
Na areias da parte jordaniana do lago (o país o divide com Israel e Cisjordânia) um grupo de 13 mulheres palestinas faz um piquenique. Cantam músicas em árabe e me convidam para tomar chá. Algumas são refugiadas; outras, de famílias de refugiados. Uma coleção de vidas amargas, mas que não lhes tirou a doçura do caráter.
A Jordânia tem uma população palestina enorme: aproximadamente 1,93 milhão de pessoas (quase um terço do país, que conta seis milhões), segundo dados da ONU. São refugiados, ou descendentes de refugiados, da guerra árabe-israelense de 1948. E há mais: outros milhares de palestinos escaparam para o reino Hashemita durante os conflitos posteriores (a Guerra dos Seis Dias, de 1967, entre eles) e após invasão iraquiana ao Kuwait em 1990 (muitos deles trabalhavam na pequena nação do Golfo Pérsico).
Lidar com tamanho contingente de deslocados nem sempre foi fácil. E a monarquia jordaniana já se viu ameaçada pelo imbróglio. O caso de 1970 é o mais emblemático: no evento que ficou conhecido como Setembro Negro, guerrilhas palestinas entraram em conflito armado com o governo do rei Hussein bin Talal.
Entidades como a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) já haviam se estabelecido, no final dos anos 1960, como um poder-paralelo dentro da Jordânia. Controlavam parte do território e usavam o país como base para atacar Israel. E agregue-se: estavam descontentes com os contatos amigáveis que o reino ensaiava com o estado judeu.
No começo de setembro 1970, a milícia Frente Popular para a Libertação da Palestina seqüestrou cinco aviões internacionais, e pousou três deles em solo jordaniano. Queria a soltura de guerrilheiros detidos na Europa e em Israel. Após uma negociação que durou semanas, teve suas demandas atendidas e libertou os reféns. Mas, antes, explodiu as aeronaves na frente de câmeras de televisão.
Toda a crise, somada às tentativas de assassinato sofridas pelo monarca Hussein, jogaram o país dentro da guerra civil. Calcula-se que pelo menos 3,5 mil pessoas tenham morrido em decorrência dos conflitos entre as guerrilhas e o exército do reino.
Sim. A Jordânia me enganou: de pacata não tem nada.
A cidade de pedra Continuo minha viagem em direção ao sul da Jordânia e, no meio do caminho, está Petra. O que dizer? Difícil descrever a sensação de se entrar nesta cidade irreal, onde templos e tumbas emergem das montanhas de arenito. Petra é vermelha, rósea, labiríntica, voluptuosa. Seus caminhos cruzam cânions estreitos, sobem encostas sinuosas e descem a silenciosos vales. Beduínos, os nômades do deserto, passam pela paisagem com seus cavalos, cabras e camelos.
Os nabateus, tribo árabe que se estabeleceu na região há mais de 2,2 mil anos, foram os principais escultores desta cidade. Souberam transformar o maleável arenito em belíssimas peças de arquitetura. O Al-Khazneh ("o Tesouro"), obra do século 1 a.C., é o mais famoso deles. Foi feito como mausoléu real e sua fachada, de inspiração helenística, impressiona pelas dimensões: tem 43 metros de altura por 30 de largura.
Os nabateus foram influenciados pelas grandes civilizações de sua época, como os egípcios, gregos e romanos, principalmente em suas concepções arquitetônicas.
No alto de uma das montanhas que cercam Petra está mais uma obra de arte: o Ad-Deir ("o Monastério"), outro mausoléu, mas que foi utilizado, no século 5 d.C., como igreja bizantina. Para visitá-lo, turistas preguiçosos sobem no lombo de pobres burricos e os fazem encarar os 800 degraus que levam até o topo.
Petra foi uma cidade poderosa. Os nabateus a colocaram na rota das caravanas que, rumo ao Mediterrâneo ou ao Mar Vermelho, cruzavam a península arábica. Desenvolveram sistemas de irrigação e construíram represas para armazenar a água das chuvas que, de vez em quando, caíam sobre o deserto.
Em seu auge, Petra chegou a ter 30 mil habitantes. Mas o poder dos nabateus a transcendia. Eles formaram um império, econômico e militar, e que ia da península do Sinai, hoje Egito, até Damasco.
Petra foi anexada, em 106 d.C., ao Império Romano. Era a capital da província Arábia e continuou sendo uma importante cidade do Oriente Médio. Seu declínio veio nos séculos seguintes, com a mudança das rotas comerciais. Terremotos, um deles ocorrido em 551 d.C., também contribuiu para o abandono da cidade.
Após ter sido utilizada como forte pelos cruzados no século 12 d.C., Petra perdeu-se no tempo e no espaço. Seria redescoberta, em 1812, pelo viajante suíço Johann Ludwig Burckhardt.
O deserto de LawrenceMinha viagem pela Jordânia chega ao fim. Ou melhor, a um novo começo. Estou no deserto do Wadi Rum e sua paisagem extraterrena, irreal, brinca com meus olhos. A areia é vermelha, densa, fofa, e pontuada por tímidos arbustos verde-pálido. Montanhas colossais, cada uma com seu próprio desenho, fecham o deserto em um vale infinito. O céu está azul, e as sombras das nuvens deslizam pela superfície marciana do Wadi Rum.
O arqueólogo britânico T. E. Lawrence liderou daqui a revolta árabe que, durante a Primeira Guerra Mundial, ajudou a expulsar os otomanos do Oriente Médio. Mas, como é de se supor, não foi cumprida a promessa de que a vitória daria aos árabes uma nação soberana. Síria e Jordânia só ganhariam sua independência (de França e Reino Unido, respectivamente) em 1946. Mesmo assim, sacanices à parte, a visão enleva. Impossível não imaginar Lawrence da Arábia, o herói, sobre seu cavalo, liderando uma horda de beduínos por esse deserto épico. Impossível.
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