UOL Viagem

27/01/2009 - 17h36

Volta ao Mundo: Trastevere, a vida é bela na cidade eterna

MARCEL VINCENTI
Colaboração para o UOL, de Roma

Marcel Vincenti/UOL

As pontes que cruzam o Tibre são uma ótima introdução ao bairro de Trastevere

As pontes que cruzam o Tibre são uma ótima introdução ao bairro de Trastevere

Está no nome: Roma evoca romantismo. E não há como negar - a vida é bela na cidade eterna. Os italianos sabem, como ninguém, dar ênfase a seu cotidiano. Da comida ao vinho, da música ao belo idioma, tudo aqui vem acompanhado por três pontos de exclamação. Uma nação passional e apaixonante, com uma capital que representa toda a sua essência.

Roma tem muito a oferecer. As ruínas do Coliseu e o ouro do Vaticano são apenas o começo. Na margem oeste do rio Tibre, por exemplo, encontra-se um dos bairros mais interessantes da cidade: Trastevere, lugar perfeito para se saborear todo o néctar da dolce vita.

As águas do Tibre separam Trastevere do centro da capital italiana. Chego ao bairro pela ponte Sisto que, com seus quatro arcos, 108 metros de comprimento e 530 anos de história, é uma das mais belas obras arquitetônicas desta parte da cidade. Estamos na terra do Vaticano e, ao norte, um tanto distante, mas sempre presente, destaca-se a cúpula da Basílica de São Pedro, sagrada e assustadora em iguais medidas.

A ponte Sisto foi construída em 1479, sob ordens do papa Sisto IV, e fortaleceu a integração de Trastevere com o resto de Roma. Já o rio que corre entre seus arcos é, tão óbvio quanto surpreendente, mais antigo que a cidade eterna. Por aqui, segundo a lenda, flutuaram em um cesto os gêmeos recém-nascidos Rômulo e Remo (condenados à morte pelo rei Amúlio, que temia que os irmãos o derrubassem do trono um dia), antes de pararem nas raízes de uma figueira, serem acolhidos por uma loba e, já crescidos, darem origem à cidade de Roma.

Um cenário imaginativo, que ganha intensidade com o céu azul sobre as árvores desfolhadas das avenidas Lungotevere e o curso tortuoso das águas do Tibre.

Sobre a ponte Sisto, um casal se beija. E, em andar pacato, um pastor alemão leva sua dona para passear - uma velhinha que não conseguiria segurá-lo, caso o enorme animal visse um gato por aí (e, acreditem, há muitos gatos em Roma).

A praça Trilussa, do outro lado da ponte, marca o começo de Trastevere. O local é dedicado ao poeta Carlo Alberto Salustri "Trilussa", morto em 1950, que escrevia seus versos em dialeto romano. Uma bonita poesia sua, chamada "Felicità", em tradução livre, assim diz: "há uma abelha que pousa, / sobre o botão de uma rosa, / suga-o e parte, / tudo somado, a felicidade / é uma pequena coisa". Nas escadas da fonte que decora a praça, sob o sol e o frio amenos, jovens leem livros e fumam cigarros, observados pela estátua de Trilussa.

Trastevere, sem dúvida, tem atmosfera única. Suas ruas, feitas de pedra, são estreitas e sinuosas. Das janelas das antigas casas, cuja beleza é realçada pelo amarelo descascado das paredes, mammas italianas observam o movimento dos transeuntes, que passam, vagarosos, pelas históricas vielas.

Lindas laranjeiras decoram o bairro e há cheiro de pão quente no ar. Também no ar, dançando ao sabor do vento, calças, camisas, meias e ceroulas, penduradas em enormes varais, dão um toque napolitano à área. Dividem o espaço com decorações de Natal, que resistem à chegada do Ano Novo. Nada que surpreenda: Trastevere é um lugar parado no tempo.

Marcel Vincenti/UOL
Construída em 1479, a ponte Sisto conecta Trastevere ao centro da cidade de Roma
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Além do Tibre

Separado da região central da Roma pelo Tibre, Trastevere só começou a fazer parte da cidade no século 3 DC, por ordens do imperador Aureliano. Seu nome vem do latim trans Tiberim, ou "além do Tiber". Durante a República Romana (509 - 27 AC), a área foi habitada por pescadores, que tiravam seu sustento do velho rio. A região também atraiu considerável número de judeus ao longo da história.

Por seu relativo isolamento, Trastevere adquiriu, desde cedo, esse clima peculiar que ainda é uma de suas marcas. E mesmo quando o assunto é igreja (encontradas às centenas em Roma), o bairro reserva surpresas.

Marcel Vincenti/UOL
Cúpula da Basílica Santa Maria in Trastevere: mosaico criado no século 13 por Pietro Cavallini
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Construção de 1090, a capela Santa Maria tinha suas portas trancadas a cadeado quando a visitei. A fachada de tijolos, um tanto dilapidada, e o campanário velho e silencioso, apresentavam uma interessante austeridade. Minha frustração, por sorte, foi notada. Paolo Conversano, o italiano responsável em cuidar da capela, muito empolgado com seu trabalho, se colocou à disposição para me mostrar o interior do velho edifício.

A porta rangeu, entramos e logo Conversano estava dentro de um buraco, tirando ossos debaixo da terra. "Olha, um pedaço de fêmur. Olha, esse não sei dizer o que é. Mas é verdade. Aqui está um saco com os ossos que temos encontrado por aqui". Em seguida, ele me mostra pedaços de cerâmica romana que também emergiram deste centenário terreno. A capela está em processo de restauração. A ossada descoberta em seu subsolo, diz ele, pode pertencer a pacientes de um hospital que existia aqui ao lado.

Trastevere, entretanto, possui também igrejas com o perfil do Vaticano. A Basílica Santa Maria in Trastevere, a mais importante delas, tem sobre seu altar um mosaico dourado criado, no século 13, pelo artista italiano Pietro Cavallini. A obra reúne, em estilo suntuoso, cenas da vida da Virgem Maria. Um belo cenário para abrigar uma ossada ilustre: a do papa Calisto I, pontífice entre 217 e 222 DC. Lá fora, na porta da Basílica, duas senhoras bósnias, de rosto enrugado e voz rouca, um véu negro a lhes cobrir os cabelos, pedem esmolas. São muçulmanas e ficam felizes ao ver os poucos níqueis caindo em suas mãos vazias.

Todos os tipos de arte

Estamos na Itália, e em Trastevere não poderia ser diferente: o bairro abriga espaços de arte fabulosos. A Galleria Corsini, por exemplo, possui obras de Caravaggio e Jacopo Bassano. Já a Villa Farnesina, uma construção do século 16, tem seu interior decorado por afrescos de Rafael Sanzio e discípulos. As salas do edifício oferecem uma deliciosa experiência sensorial de 360º com as pinturas feitas pelo gênio italiano. Entre as obras mais aclamadas da Farnesina está o "o Triunfo de Galatéia", criada por Rafael no começo do século 16, na qual a ninfa Galatéia, figura da mitologia grega, aparece cercada por cupidos e seres marinhos.

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Desde a colina do Gianicolo tem-se uma das melhores vistas de Roma
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E maior obra de arte local - a própria cidade de Roma - também pode ser observada a partir de Trastevere. E de ângulo privilegiado. Localizada ao lado dos limites do bairro, a colina do Gianicolo tem um mirante de onde é possível ver grande parte da capital italiana. Uma estátua de Giuseppe Garibaldi e um monumento a soldados que lutaram pela unificação da Itália no século 19 estão ali ao lado. O Gianicolo foi cenário de sangrenta batalha contra os franceses em junho de 1849.

A guerra, porém, e por sorte, foi substituída pelo hedonismo. Trastevere, um lugar pacato durante o dia, tem a melhor vida noturna de Roma. O bairro está cheio de bares e cafés estilosos, e comida de todas as regiões da Itália pode ser encontrada em seus restaurantes. Falar da culinária local, no entanto, e de seus vinhos deliciosos, renderia outro capítulo. Na terra do Vaticano, pecado é não viver a vida.

Veja mais: Fotos da passagem de Marcel por Trastevere

* O mochileiro Marcel Vincenti, 25 anos, partiu dia 9/4/08 para uma volta ao mundo de 12 meses e mostra todo mês em UOL Viagem o que tem visto por aí. Saiba mais

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