1.830 por hora

Violência à mulher no Brasil é onipresente: por conhecido, ou não, dentro ou fora de casa e em todas as idades

Beatriz Montesanti e Luís Adorno Do UOL, em São Paulo 22.fev.2019 - Gabriela Cais Burdmann/UOL

No dia 30 de janeiro, uma massagista de 46 anos foi agredida em seu apartamento por um homem desconhecido. Ele foi identificado e preso um mês depois, após ela fazer uma denúncia na delegacia. Em 6 de fevereiro, outro homem ejaculou em uma universitária de 22 anos em pleno transporte público. Ela gritou por ajuda, "mas ninguém fez nada".

As duas histórias são sintomáticas do quadro de violência contra a mulher no Brasil: ela é onipresente. Ou seja, acontece dentro e fora de casa, atinge mulheres de todas as idades e o agressor pode ser conhecido ou não. As histórias ilustram os números apresentados pelo relatório "Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil", divulgado hoje (26) pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).

Os indicadores da pesquisa são referentes ao número de mulheres com 16 anos ou mais que aceitaram responder aos questionários. Em projeção feita pelos pesquisadores e usada para definir os números aqui apresentados, esse universo corresponde a 65,6 milhões de mulheres.

Segundo o censo de 2010 (atualizado em 2012) do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a população feminina maior de 16 anos é de 97.348.809 pessoas.

Segundo o levantamento, 27,4% das mulheres do país sofreram algum tipo de violência ou agressão no último ano. Quase 80% dessas agressões foram praticadas por um conhecido, como cônjuge, ex-companheiro ou até vizinho. E cerca de 40% das agressões aconteceram no interior do próprio lar. Menos da metade das mulheres procuram algum tipo de ajuda para a violência sofrida.

Quando se trata de assédio, como "cantadas", comentários desrespeitosos ou assédio físico no transporte público, os números são ainda maiores: 37,1% das mulheres entrevistadas disseram ter passado por alguma dessas situações nos últimos doze meses.

Em valores absolutos, os resultados são assustadores. Segundo uma estimativa da pesquisa, são mais de 4,6 milhões de mulheres que sofreram uma agressão física (batidão, empurrão ou chute) propriamente dita no Brasil no último ano. O que dá, em média, 536 mulheres por hora. Para violências de qualquer tipo, são 16 milhões de mulheres --1.830 por hora, ou 24,4% do total, considerando o percentual mínimo dentro do intervalo de confiança da pesquisa - algo como a margem de erro. Se levado em conta o percentual máximo, que foi de 30,3% das mulheres entrevistadas, o número chega a quase 20 milhões de vítimas. Para divulgação de porcentagem, a pesquisa considera como dado a média, de 27,4%.

Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP, explica que o objetivo do estudo é produzir dados de qualidade sobre o tema, que permitam elaborar intervenções públicas efetivas no combate à violência contra a mulher. Devido a subnotificação dos casos, diz ela, os registros oficiais do estado não dão conta da dimensão do problema. "Queremos dar visibilidade para esses tipos de violência contra as mulheres que o poder público não consegue captar com as suas classificações."

Somado a isso, afirma ela, a realidade política brasileira não favorece a elaboração e implementação de políticas públicas de combate à violência contra a mulher. "Os principais cargos públicos no Brasil são ocupados por homens. As mulheres não estão nos cargos prioritários importantes para pensar políticas públicas, o que dificulta a implementação de medidas para enfrentar violência de gênero", diz Samira em entrevista ao UOL.

O levantamento, encomendado pelo Fórum, foi feito pelo Datafolha nos dias 4 e 5 de fevereiro de 2019. Ao todo, 2.084 pessoas foram entrevistas, entre homens e mulheres, em 130 municípios de todas as regiões do Brasil. A margem de erro para o total da amostra nacional é de 2 pontos percentuais, para mais ou para menos. As perguntas realizadas pela pesquisa tratavam de situações vividas pelas mulheres nos últimos 12 meses, traçando assim um perfil das mulheres que já sofreram qualquer tipo de assédio, agressão, espancamento, ameaças e ofensa sexual.

Eduardo Anizelli/Folhapress

Percepção sobre violência diminuiu

Mas agressões contra mulheres aumentaram

Uma observação em particular chama atenção nos resultados da pesquisa: a discrepância entre os números de percepção da violência e de vitimização - ou seja, da violência que acontece de fato.

De acordo com o relatório, a percepção de fatos violentos diminuiu desde que o levantamento foi feita pela última vez, em 2017: 59% dos homens e mulheres entrevistados relataram terem presenciado alguma situação de assédio ou agressão, ante 66%, em 2017.

Já os relatos de agressões sofridas pelas mulheres permaneceram constantes nos últimos dois anos. Em 2017, 28,6% das entrevistadas responderam terem passado por algum tipo de violência ou agressão. Em 2019, foram 27,4% - a diferença está dentro da margem de erro. Para se ter uma dimensão melhor dos valores, três de cada dez mulheres entrevistadas sofreram algum tipo de violência.

Para Samira Bueno, essa incoerência pode estar relacionada ao momento político em que o país vive. "A sociedade está mais alheia e isso é um fato. A questão é por que ela está mais alheia. Pode ser por conta do momento político. Pode ser porque estamos evitando olhar para esses fenômenos e refletir sobre isso", explica ela.

"Você tem de um lado todo o empoderamento feminino e das mulheres demandando direitos e políticas públicas de atendimento, e de outro você tem um movimento conservador em que debater gênero se tornou algo ideológico. A violência de gênero tem sido muito mal interpretada."

Outra explicação para a discrepância, analisa a especialista, é o fato de que cada vez mais as agressões acontecem no interior da própria casa. "Talvez haja essa percepção de que a violência diminuiu porque ela está cada vez mais restrita aos espaços domésticos."

Segundo a pesquisa, 42% das mulheres que relataram terem sofrido algum tipo de violência, disseram que ela aconteceu em casa. Além disso, em 76,4% dos casos, o responsável pela agressão foi um cônjuge, companheiro ou namorado. "O algoz da mulher é cada vez mais alguém próximo."

Gabriela Cais Burdmann/UOL Gabriela Cais Burdmann/UOL

'Gritei trancada no meu banheiro, mas ninguém ouviu'

Uma massagista gaúcha, de 46 anos, ficou aliviada na manhã da última sexta-feira (22). Ela foi ao 5º DP (Distrito Policial), no bairro da Aclimação, para fazer o reconhecimento de um homem que no mês anterior a fez passar por momentos de terror. "Era ele, com toda a certeza", diz a vítima, que prefere não se identificar.

No dia 30 de janeiro de 2019, o homem ligou para M., que divulga seu contato em um site de serviços, e marcou uma massagem para o dia seguinte, às 11h. Ele se descreveu como um policial estressado, que precisava dos serviços prestados por ela para relaxar. No dia 31, pouco antes do horário combinado, ele ligou para confirmar a sessão e foi até o apartamento da mulher, no centro de São Paulo, onde ela faz seus atendimentos.

"Ele chegou, esperou eu ficar de costas, colocou as mãos sobre a minha boca, prendeu minhas mãos e meus pés e começou a tirar a minha roupa. Eu fiquei pelada", contou M. à reportagem, horas após reconhecer o criminoso. Ela perguntou se ele iria matá-la. "Antes vou brincar um pouco", respondeu o agressor.

"Ele começou a revirar o apartamento. Enquanto ele revirava, eu consegui tirar a amarração do meu pé e me tranquei no banheiro", conta a massagista. Ela gritou por cerca de quarenta minutos, trancada no lavatório de seu apartamento, mas ninguém ouviu. As amarras em torno de seus pulsos começaram a apertar, machucando suas mãos. Com dor, decidiu arriscar abrir a porta e buscar ajuda. Quando saiu, o agressor já havia ido embora, levando alguns objetos de valor e deixando a porta do apartamento escancarada.

Divulgação/Polícia Civil Divulgação/Polícia Civil

Flagrado no elevador

O suspeito é o segurança José Carlos de Souza Santos, 45, que havia sido acusado em setembro de 2018 de ter puxado os cabelos e desferido socos contra as costas de uma ex-namorada, por não aceitar o fim da relação. Segundo informações da Polícia Civil, ele teve a prisão temporária, de cinco dias, acatada pela Justiça. Também de acordo com a polícia, foi pedida a prisão preventiva, o que deixa sua saída da prisão sem um prazo.

Em depoimento à polícia, ele afirmou não ter agredido a massagista. Disse que ela "ficou louca" sem motivos aparentes e que, quando deixou o apartamento, ela estava deitada, na cama, de lingerie. As imagens de câmeras de segurança do prédio, verificadas pela polícia, mostram M. descendo o elevador nua e amarrada, pedindo socorro. O porteiro do prédio foi o primeiro a encontrá-la.

Foi a própria massagista que abriu o caminho para a investigação que culminou na prisão do seu agressor. "O indivíduo me ligou outra vez. Eu peguei o telefone dele, coloquei no Messenger, do Facebook, e apareceu o perfil. Enviei para a investigadora e depois de três dias a polícia tinha a ficha completa dele, que acabou detido. Reconheci primeiro por foto, e depois pessoalmente", conta.

De acordo com a Polícia Civil, José Carlos de Souza Santos, que já tinha uma agressão em sua ficha criminal, costumava procurar massagistas e prostitutas por avaliar que elas nunca o denunciariam. Foi instaurado inquérito de estupro e roubo contra ele.

Ausência de dados estatísticos

A atitude da massagista é incomum, num cenário em que a maioria das mulheres optam por não relatar os abusos e agressões sofridos - 52% dos casos, segundo o relatório "Visível e Invisível". Não à toa: segundo M., até mesmo pessoas próximas a desencorajaram a fazer a denúncia.

Diziam que não ia dar em nada. Eu não dei ouvidos. Denunciei e tenho certeza que eu não fui a única que sofreu com ele. Se eu não denunciasse, ele faria o mesmo com outras

Para Samira, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a maior parte das mulheres não procuram ajuda não só por medo ou vergonha, mas também porque em boa parte das vezes são mal atendidas. "Se o poder público não consegue a confiança dessa mulher, ela não vai procurar o estado. As mulheres estão morrendo sem que o estado nem seja acionado", diz.

"As leis por si só não mudam condutas, não mudam o comportamento. Para a lei funcionar, é necessário outras instâncias do poder público trabalhando para que isso aconteça. Isso necessariamente depende do trabalho da polícia." Por outro lado, o relatório também indica que gerações mais jovens, apesar de serem mais vulneráveis à violência, estão mais atentas à questão, assim como mulheres de escolaridades mais altas.

De acordo com os números apresentados, 77% das pessoas entrevistadas entre 16 e 24 anos relataram terem visto alguma situação de assédio ou agressão nos últimos 12 meses. A porcentagem é menor em todas as demais faixas de idade - chega a 40%, para entrevistados com mais de 60 anos. Já no recorte da escolaridade, o reconhecimento da violência é de 65% para pessoas com ensino médio e superior. Entre entrevistados com apenas o ensino fundamental, fica em 48%.

"Mulheres jovens, até por estarem muito mais empoderadas e terem mais noção de seus direitos, estão muito mais propensas a reconhecer diferentes tipos de violência como tal", diz Samira. "Se todas as mulheres de todos os estratos etários tivessem a mesma consciência sobre diferentes tipos de violência, possivelmente os números seriam melhores.

Juristas fazem apelo para denúncias

  • Violência de gênero intimida denúncias

    "A maioria das mulheres resolvem não denunciar em razão da própria dinâmica da violência de gênero. Elas têm sua força minada, não só pela ausência de informação sobre seus direitos, mas sobretudo pela dependência econômica, medo, vergonha, falta de conhecimento em relação ao sistema de rede de apoio à vítima, o que as tornam vulneráveis e suscetíveis ao ciclo da violência." - Larissa Pinho, juíza de Direito em Rondônia e doutora em Ciência Política pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

    Imagem: Arquivo Pessoal
  • Pressão familiar, econômica e desconfiança

    "Em 28 anos de magistratura, sendo 26 com jurisdição criminal, afirmo que sempre se detectou que estupro e atentado violento ao puder ocorriam no âmbito familiar e, na sua maioria não eram noticiados. Essa escolha de não denunciar vêm da pressão da própria família, dependência econômica, desconfiança da palavra da vítima e julgamento social. Hoje, as mulheres já denunciam mais. As mais jovens, pela independência financeira e coragem de enfrentar o preconceito que, infelizmente, ainda é um grande entrave." - Ivana David, desembargadora de SP

    Imagem: Arquivo pessoal
  • Respeito nas delegacias

    "Para coibir a prática da violência contra a mulher desses crimes, não são somente os novos ordenamentos jurídicos, nem a nova lei, mas sim a conscientização e a educação de que a mulher não pode ser tratada como um objeto, mas com respeito e igualdade. Nas delegacias, o principal objetivo é pregar o sentimento de respeito para que a mulher se manifeste e que ela não seja permissiva, nem condescendente com esta prática de crime." - Raquel Kobashi Gallinati, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia de SP

    Imagem: Joel Silva/Folhapress
  • Conscientização e coragem para denunciar

    "É preciso romper o silêncio. A Justiça, com o marco legal da Lei Maria da Penha, está preparada para ter o atendimento e o andamento da situação. Pode haver um ciclo de violência que começa com xingamentos, ameaças e depois passam para lesões corporais e, depois, o feminicídio. Esse agressor acaba pedindo desculpas, a mulher não denuncia e esse agressor age novamente. Então, é necessária conscientização e coragem para denunciar." - Fabiana Dal'Mas Rocha Paes, promotora de Justiça de SP

    Imagem: Arquivo Pessoal
  • Silêncio é a pior forma de enfrentar

    "Não tenho dúvida de que o silêncio é a pior forma de enfrentar a violência, não só porque ele constitui um grande instrumento de poder do agressor, mas também porque é uma forma de garantir a perpetuação da violência e o risco de vida das mulheres. A violência contra a mulher não tem idade, lugar, raça, etnia, religião, orientação sexual etc, porque é violência de gênero. De forma geral, o fato é que a violência contra a mulher diz respeito a uma manifestação de poder calcada nas construções históricas e culturais das desigualdades de gênero" - Fabíola Sucasas, promotora de Justiça de SP

    Imagem: Arquivo Pessoal
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