Um prédio antitransfobia

Reportagem visitou ocupação LGBT em Copacabana e conta as histórias de quem vive por lá

Fabiana Batista Colaboração para Universa Fabiana Batista/UOL

Em um prédio de seis andares ocupado irregularmente em Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro, cerca de 40 pessoas LGBTQI+ encontram segurança, apoio mútuo e esperança.

O prédio é vizinho de outros prédios residenciais, mas também de supermercado e restaurantes. Cada andar, dos seis que a ocupação tem, é dividido em quatro apartamentos (entre eles dois com três quartos, uma sala, cozinha e um banheiro e duas quitinetes). São ao menos quarenta dormitórios.

Os banheiros dos apartamentos não são utilizados para banho, porque não há água encanada no prédio. A atriz e compositora WellDonna Mirifica, 31, que ilustra a foto principal desta reportagem ao lado de Natasha, mora no segundo andar com outras três outras moradoras. Ela conta que saiu de casa por não aguentar mais o preconceito da família e, depois de tentar morar com um amigo, decidiu ir para a rua.

Já Ana Claudia Santiago, 55, trabalhadora sexual e moradora da casa, conta que já é escolada em ocupações e, junto do grupo, passou pelos bairros de Botafogo, Vila Isabel, Bonsucesso e centro, até ocuparem o prédio de Copacabana há 4 meses. Claudia é do interior de Maceió e há 4 anos voltou para o Rio depois de uma viagem pela Europa e Brasil. Há 3 anos, ela mora na ocupação CasaNem, seja onde ela estiver.

Para ela a ocupação é um espaço de acolhimento, mas também de oportunidade de trabalho, "enquanto existir CasaNem eu estarei e sempre serei uma Nem".

No térreo do prédio há quatro espaços, três deles atualmente vazios e um salão nos fundos utilizado para as sessões de cinema, formações políticas, cursos e festas. O quarto andar do prédio é reservado para mulheres que tenham vivenciado situação de violência doméstica.

No sexto andar, além de uma sala de convivência com televisão que reúne moradores da casa, há salas reservadas para o projeto de assessoria jurídica, médica e assistência psicológica, que devem acontecer em breve.

Não há elevadores e o portão da frente é trancado com cadeados e fechado com tapumes por segurança. "Me sinto acolhida e protegida com o cadeado que tranca o portão", conta a moradora Gabriela apontando para o portão.

Foi o grupo TransRevolução, movimento social transgênero que se organiza em torno da luta pelos direitos sociais para a comunidade trans em vulnerabilidade social, que deu o pontapé inicial para que a ocupação CasaNem acontecesse.

Em 2016, ocupou um espaço na Lapa que se tornou o principal polo aglutinador da causa que abrigaria exclusivamente LGBTQI+, em sua maioria mulheres e homens trans. Com a desocupação da Lapa em janeiro deste ano, as moradoras foram para outros lugares na cidade do Rio, de onde saíram por despejo ou transfobia.

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"A ocupação é o sim da sociedade"

Foi em uma festa de Carnaval em 2016 junto de Natasha, sua amiga há 16 anos e também moradora da ocupação, que a atriz e compositora WellDonna, 31, conheceu a CasaNem da Lapa. "Fui para essa festa e pela primeira vez eu me montei, prepararam um salto para mim, uma peruca, um turbante e um vestido", lembra. A partir desse dia foi morar na ocupação.

Para ela o espaço é um divisor de águas. "Eu sentia que era a única estranha no mundo, mas na CasaNem eu consegui aprender que quando minha família me criticava, não era ela me criticando, era a sociedade."

WellDonna é da capital maranhense e chegou no Rio de Janeiro aos 5 anos com os avós maternos para morar no bairro de Santa Cruz. A Lapa não foi a primeira experiência em uma ocupação, ainda criança participou de uma ação da FIST com os avós no centro do Rio, mesmo grupo que ampara judicialmente a ocupação de Copacabana.

Ainda na infância fez teatro e balé. Aos 13, foi obrigada pela avó a voltar para o Maranhão. "Você vai aprender a ser homem lá na terra", relembra. Passou a morar com a avó paterna que, mesmo com acolhimento mais afetuoso, tentou influenciar a neta a entrar no padrão do gênero masculino.
Foi para a igreja, se relacionou com uma mulher aos 17 anos e teve um filho. Neste ano, voltou para o Rio num quadro depressivo e após tentativas de suicídio. "Na escola, eu corria de dez meninos para não apanhar. Isso apenas porque eu sempre fui afeminado".

WellDonna resume a convivência na casa em consciência e coletividade, sobretudo porque foi na ocupação que ela pode escolher quem é, e para ela essa é a melhor forma de ser acolhida, "é o abraço da mãe que eu nunca tive, é o sim da sociedade."

Natasha

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"Aqui é a minha família, é tudo"

Nathasha Santos tem 33 anose nasceu em Esplanada, no interior da Bahia. Veio para o Rio de Janeiro com a mãe há 24 anos e em uma discussão por não sentir-se respeitada pelo seu gênero foi expulsa de casa.

Além de pintora e atriz, seu maior sonho é ser artista plástica. Por isso, desde nova pinta a parede da casa onde mora e quer colorir as paredes do prédio. "Onde puder eu vou pintar e dar vida, gosto de embelezar a cidade e onde eu passo gosto de dar cor".

Morou com cinco irmãos e a mãe, que os criou sozinha com o salário de empregada doméstica logo depois que seu marido a abandonou. Natasha tinha apenas nove meses e atualmente vê o pai em eventos de família apesar de não gostar de sua presença. Em 2016, foi convidada por uma amiga a conhecer a ocupação CasaNem na Lapa, também no Rio, e dali ficou até conseguir um emprego no mesmo ano e alugou uma casa com WellDonna.

Para ela, a ocupação é um espaço de passagem, no qual, assim que as pessoas melhoram de vida, decidem se mudar e ganham apoio das outras moradoras. "Muitas arrumam uma casa ou se casam e alugam uma casinha", conta.

No início deste ano, mais uma vez desempregada, ela retornou para a ocupação, que na época já havia sofrido alguns despejos e estava em um imóvel no bairro de Vila Isabel.
Sobre a organização e limpeza da casa, Natasha compreende que deve haver um bom senso entre todas as ocupantes. "Ao ver uma mana querendo fazer o almoço, eu vou pegar dois baldes de água e vou ajudar a lavar a louça. Vou lavar um banheiro, passar uma vassoura, pois eu gosto de ver e fazer o que tem que ser feito."

Aqui a gente acolhe as pessoas e compartilhamos com o próximo o que cada uma sabe. Eu procuro isso lá fora, mas é mais difícil de encontrar, então a gente constrói isso aqui dentro

Natasha Santos, Moradora da ocupação

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"Sou uma trans orgulhosa de mim"

Luane Monteiro, 26, conta que foi morar na rua por não aguentar mais o preconceito da família, por mais que a mãe seja lésbica e o avô e o irmão mais velho, gays, ela diz que é a única mulher trans da família. "Eles queriam que eu me vestisse com roupa de menino."

Morou na favela de Bonsucesso, no Complexo da Maré e, antes de sair de casa depois de uma briga com a companheira da mãe. Ela trabalhava como ajudante de cozinha e garçonete. "Sonho em conseguir terminar o curso de cabeleireira para abrir um salão de beleza. Quero conseguir colocar o nome do meu filho em uma casa e estar com ele todos os dias."

Já em processo de transição de gênero, a jovem engravidou uma amiga na primeira vez em que ambas fizeram sexo. "Meu filho cresceu comigo assim, me tornando uma mulher que eu sou hoje. Digo para ele que pode me chamar do que ele quiser".

Foi uma amiga trans da iniciativa Prep (Profilaxia Pré-Exposição), projeto social da Fiocruz de prevenção contra o vírus HIV, que apresentou para ela a ocupação de Copacabana. Ela diz que foi muito bem recebida. "No dia teria um projeto de cinema no salão onde todas se reúnem para ver filme, um amigo da casa me colocou para descansar no quarto dele, me recepcionou, eu comi, tomei um banho e descansei."

Hoje ela mora no mesmo apartamento de um casal, "que são quem eu considero meus pais pelo amor e carinho que a gente tem um pelo outro". Na dinâmica de organização do espaço, Luane contribui com a limpeza. Depois de morar na rua por um tempo, se sente protegida na atual moradia, e para ela a ocupação CasaNem é "um recomeço, superação". "Me sinto bem, confortável e segura."

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"Eu sofria muita transfobia por parte da minha família"

Bianca da Silva Miranda, youtuber e atriz, chamou a atenção da reportagem por sua euforia com a chegada da notícia da retificação de registro civil e a nova certidão de nascimento. Havia três meses a jovem trans de 21 anos nascida em Macaé, no Rio, tentava mudar o nome social e o gênero no registro civil.

Bianca saiu de casa cedo por não ter o apoio da família para a transição de gênero, mas relata que ao ficar desempregada, voltou à convite do irmão e fez as pazes com a mãe.

No entanto, se sentiu sempre em situação de vulnerabilidade "por estar sendo expulsa de casa a todo momento". "Quando era expulsa da casa da minha mãe eu morava com a minha avó e depois voltava a morar com a minha mãe."

Ela conta que no ano passado se cansou dessa instabilidade e se mudou para a capital, onde morou em vários lugares: Inhaúma na casa de um amigo, Arraial do Cabo no trabalho e voltou para o Rio de Janeiro para morar em uma casa emprestada por uma amiga. Ficou sabendo da ocupação CasaNem ainda em 2018, mas quando a ocupação deixou a Lapa e se instalou em Copacabana foi que decidiu visitá-la.

"Agora estou tranquila em um espaço extremamente agradável. Antes de vir para cá, eu sofria muita transfobia por parte da minha família e hoje em dia moro em um lugar de segurança e conforto", conta.

Para ela, a dinâmica da casa é coletiva, com doações que recebem de apoiadores há uma rotina de almoço, café e jantar. Além disso, todas participam da limpeza e reforma do prédio, para melhorar o espaço e mantê-lo limpo.

"Eu acho que a gente está caminhando para um mundo melhor, mas ainda vai demorar a ser perfeito", relata ela, afirmando que a região é hostil à ocupação e, principalmente, a quem elas são. Mas ela também sinaliza quehá aqueles que fazem doações e alguns que agradecem a elas pela ocupação de um prédio que havia anos estava abandonado.

Bianca afirma que quando você tem as documentações que te legitimam legalmente é mais fácil de garantir respeito e se assegurar judicialmente caso seja necessário. Além dela, Natasha e WellDonna também conseguiram, no início do ano, fazer a mudança de nome. Já Gabriela não vê a hora de finalizá-la.

Eu tenho pavor desse sobrenome, porque são parentes que me mataram, me deram remédio para dormir, tentaram cortar meu cabelo à força. Precisei fazer um tratamento de ressocialização, pois estava em depressão profunda

Gabriela, Moradora da ocupação

Fabiana Batista/UOL

Ela foi Miss Brasil Gay em 1985

Gabriela, garçonete e modelo, é a moradora mais recente da ocupação, em que estava havia quatro dias. Ela contou que em uma conversa, uma mulher chegou até ela e disse: "Eu não tenho dinheiro para te dar, mas vou te levar para uma casa que você vai dormir e terá refeições regularmente".

Diferente da maioria das moradoras que conversaram com a reportagem, Gabriela veio de uma família de classe média alta, mas, como todas, saiu de casa ainda muito jovem por sofrer preconceito e violência de gênero.

Para sobreviver, trabalhou fazendo shows com outras travestis em casas noturnas. Em 1985, foi Miss Brasil Gay Juiz de Fora e se mudou para o Rio para tentar ser modelo. Com riscos de ter câncer e depois da morte de um namorado, tirou a prótese dos seios e voltou para a casa da família, "mas eu nunca deixei de ser travesti, pois a travesti sempre esteve dentro de mim".

Depois da morte de parentes, ela diz que se libertou dos padrões impostos pela família. Religiosa, ela cita histórias da Bíblia e compara a ocupação à caverna de Adulão, "onde Davi se refugiou com os abandonados que a sociedade não queria. Eu estou aqui como Davi para dizer para as minhas irmãs que elas são especiais e podemos levantar a cabeça para sermos nós mesmas".

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