Salve, rainha

Com suas lives diárias, a cantora Teresa Cristina chega ao auge da carreira em pleno confinamento

Marina Bessa de Universa, em São Paulo

Numa dessas noites de quarentena, meio triste, meio angustiada, entrei no Instagram e vi que Teresa Cristina estava ao vivo. Resolvi ver qual era a dessa live da qual tanto se falava.

Entrei desacreditada. E me surpreendi: nada de cenários, nada de instrumentos, nada de produção. Com o rosto bem próximo à tela do celular para ler os comentários, Teresa canta à capela, manda recado para uma amiga sumida, se empolga com alguém conhecido que vê passar por ali, escolhe alguém que levantou a mão pra cantar e passa a vez.

Pontualmente às 22h, Teresa dá início ao seu sarau diário. Tem música, tem conversa, tem poesia. Recebe os convidados como quem recebe em casa: sem pressa, dedicada a ouvir, interessada nas histórias, presente em cada momento. Beberica uma cerveja, belisca umas batatas chips e, eventualmente, pede licença para ir ao banheiro. Na roda de Teresa, tem muita gente conhecida — Chico, Gil, Marisa Monte já deram o ar da graça. Mas também tem muito artista anônimo com cadeira fixa e espaço garantido.

Minha live, minhas regras é o lema de Teresa. E por aqui vale tudo: rir, fofocar, entrar de pijama, falar palavrão, chorar, paquerar. Só não vale defender o governo. Faça isso e você verá Teresa rodar a baiana, fazer discurso e te expulsar da festa sem dó nem piedade.

Duas horas se passaram e eu ainda estava ali. Nesse dia, sonhei com música — e virei uma Cristiner.

Julia Rodrigues/UOL

O auge aos 52

Teresa Cristina está na estrada há 20 anos. Apaixonada por samba e pela Portela, foi uma das responsáveis pelo renascimento das casas de samba da Lapa, onde, por muitos anos, se apresentou com o grupo Semente. Ela sabe das coisas — conhece a história da música, de baião ao heavy metal, e tem uma memória musical afiadíssima, por conta da qual ganhou o respeito de figurões da MPB, como Caetano Veloso.

Caetano, por sinal, apadrinhou a cantora na turnê "Caetano apresenta Teresa", realizada em 2016. À época, ele disse ao jornal a Folha de S. Paulo que a primeira vez que ouviu Teresa com atenção achou tudo bem "correto e digno", mas um tanto "fosco". "Disse que ela viesse para mais perto do próprio canto, que trouxesse seus sentimentos e personagens da música que a encantaram", falou Caetano na entrevista dada a Anna Virginia Balloussier. No show em que cantava músicas de Cartola, segundo o mentor, ela mostrou mais nuances e entrega. Mas foi em suas lives que Teresa se redescobriu. Não sei se Caetano concordaria, mas Teresa desabrochou: na segurança da sua casa, olhando apenas para o seu próprio rosto na tela do celular, Teresa demonstra uma espontaneidade e uma liberdade que não costumava apresentar nos palcos. "Quando eu faço a live, é como se eu estivesse falando comigo mesma. E isso aumentou muito a minha autoconfiança."

Hoje tem segurança de cantar músicas nas quais nunca havia se aventurado. "Eu estou na minha casa, no quarto do meu sobrinho. Se eu errar, eu começo de novo. Eu passei a rir um pouco mais de mim." Ter Bebel Gilberto, Céu e Margareth Menezes aguardando a vez de cantar certamente reforçam essa autoestima — e sua visibilidade.

No mês de maio, aos 52 anos, Teresa recebeu o primeiro patrocínio de sua vida. No mês de junho, estampou a capa de uma revista de moda. No mês de julho, já não tinha mais agenda para entrevistas. Conseguiu, em plena quarentena e sem sair de casa, atingir o ápice de sua carreira. "O que me deixa mais contente é que foi uma virada feita por mim. Não teve uma equipe planejando, estudando coisas."

Eu me descobri cantando músicas que eu não cantava no palco por medo de errar. Aí eu me vi pensando: 'pô, eu estou na minha casa, no meu quarto. Se eu errar, começo de novo'.

Teresa Cristina

Só a live salva

A ideia das lives surgiu para afastar uma depressão que se aproximava bem no início da quarentena. "Eu estava dormindo muito mal e acordava com a impressão de que eu não tinha dormido. Uma sensação que eu nunca tinha vivido. Pensei: 'eu tenho que cuidar da minha mãe e da minha filha. Não posso entrar em um quadro depressivo, agora'." Convocou seus seguidores do Instagram, até então pouco mais de 90 mil, para a ouvirem. "Cantar. O que eu mais gosto de fazer. Estamos em ritmo de desaceleração, em recolhimento. A partir das 15h tentarei uma coisa nova aqui: vou fazer uma live para cantar alguns sambas imprescindíveis num momento como esse", escreveu em seu feed, no dia 16 de março.

Começou à tarde, sem frequência estabelecida, em seguida migrou para depois do Big Brother (um de seus vícios da quarentena). Quando viu, estava fazendo todos os dias, agora às 22h. Já são mais de 100 edições.

O que começou genérico foi ganhando temas. Teresa já cantou Paulinho da Viola, Roupa Nova, Tom Jobim, Lulu Santos, Zeca Pagodinho, Elis Regina. Às vezes elege um disco: Realce, de Gil, Mel, de Bethânia, Outras Palavras, de Caetano. Outras vezes embarca em efemérides, como o dia do Orgulho LGBTQIA+ ou o Dia do Rock. As lives com temas de novela ou as autorais, em que abre espaço para os artistas cantarem músicas próprias, viraram clássicos. Tem também os dias de batalha, em que desafia a amiga Monica Salmaso com temas inusitados. Minha live, minhas regras, diria Teresa.

Ela prepara tudo sozinha. Na parte da tarde, depois de terminada a rotina de faxina, cozinha e eventuais idas ao supermercado, Teresa começa a selecionar o repertório da noite — as músicas que vêm à sua cabeça são anotadas em um caderno. O afilhado Luís Alberto, que ela chama de Fu, dono do quarto que a gente vê nas lives e também no vídeo acima, é a única "equipe de produção": a ajuda a localizar algum convidado, a falar com alguém, a resolver problemas técnicos.

Eventualmente, Teresa convida artistas específicos a participarem, mas a maior parte chega de surpresa. O repertório imenso é gancho para falar de música. Teresa, que é formada em Letras pela UERJ, tem um conhecimento enciclopédico sobre autores, intérpretes e histórias das canções. E se mostra interessadíssima em aprender mais. Cantores renomados que entram na live são invariavelmente sabatinados por ela, que escuta sem pressa, anotando mentalmente cada coisa nova que aprende. Não faz questão de esconder seu lado tiete, nem suas emoções: seus saraus são um espaço de catarse, de "gatilho", como os Cristiners gostam de dizer. E o choro vem às vezes exagerado, como um desabafo.

As lives do coração

  • Realce, de Gilberto Gil (5/6)

    "Eu nunca vou esquecer dessa primeira live que eu fiz com um álbum do Gil. Naquele dia, houve o caso do Miguel, aquele menino empurrado para a morte no Recife. Eu estava retalhada e resolvi procurar uma coisa muito linda para melhorar aquela tristeza. Aí pensei no Gil. O álbum Realce tem toda aquela energia dos anos 80 e a música tem uma letra linda. 'Não se incomode que o que a gente pode pode, e o que a gente não pode explodirá'. Aquele dia foi um dos dias em que eu vi que eu não estava só."

  • Ancestralidade (14/5)

    "Esse dia foi importante porque eu senti que o meu povo [negro] está me acompanhando, que eu não estou sozinha. Que existe uma força maior. Maior que eu, maior que o Brasil, maior que tudo de ruim. Existe uma força, que a gente não vê, mas quando a gente chama por ela, ela aparece. Eu estou redescobrindo a minha. E quando a gente sente que ela está ali, dá uma segurança, uma sensação de pertencimento, uma certeza de que a gente vai conseguir superar."

Mulher no samba

Generosa, Teresa abre diariamente espaço para cantores e instrumentistas pouco conhecidos. O espaço é diverso. Há muita gente nova, muitas pessoas LGBTQ+, muitos negros. Há, sobretudo, muitas mulheres. Já passaram por ali percussionistas, cantoras de samba enredo, poetisas, grupos vocais femininos. Não é de propósito, ela diz. "Mas é muito emocionante, muito reconfortante ver as mulheres se inserir nos temas. É pra isso que a gente está lutando, né? Os temas estão lá pra todo mundo. As mulheres entram e brilham."

Um espaço que está sendo reconquistado. "O samba carioca nasceu das mãos de uma mulher — a Tia Ciata. Mas, rapidamente, a história dela foi sendo apagada e dando lugar a homens. A mulher foi ficando ali na cozinha, ou então no coro. Mas eu me recuso a acreditar que somente os homens tinham o poder de compor aquelas canções lindas que a gente conhece."

Antes da pandemia, Teresa estava se apresentando no show "Sorriso Negro", em que cantava apenas músicas de autores negros acompanhada por uma banda composta exclusivamente por mulheres. "Isso é um caminho sem volta. A mulher não vai voltar pra cozinha e pro coro. A menos que queira. É tão lindo quando a mulher pode ser o que ela quiser."

Julia Rodrigues/UOL Julia Rodrigues/UOL

#ElogieUmaMulher

Teresa tem o hábito de fazer posts elogiando mulheres. Aqui, três de suas eleitas na música

"Marina Íris, cantora e compositora jovem, muito corajosa, talentosíssima, tem um timbre de voz muito bonito. Ela me emociona muito." Escute: Rueira, do álbum com o mesmo nome.

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"Marcelle Mota é outra cantora linda que canta muito, tem uma voz grave, um pulmãozão e está ali, lutando por um lugar ao sol." Escute: Berço da Sereia, gravado para o DVD Samba Social Clube.

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"Maria Menezes, do Grupo Arruda, é outra cantora incrível. Eu gosto muito de mulheres corajosas" Escute Andança, single lançado com o grupo Arruda em maio de 2020.

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A cor da pele

Teresa está famosa, viu seu número de seguidores no Instagram mais que triplicar nos últimos meses (hoje são mais de 300 mil). É vaidosa, cuida do cabelo, retoca o batom durante a live, tem a pele ótima ("e sem sexo, amor"). Resolveu, então, procurar patrocínio para suas lives junto a uma marca de cosmético. Contou a história ao amigo Luis Lobianco, durante a live do dia 28 de junho. "Disseram que estavam sem dinheiro. Mas aí essa mesma marca procurou outra cantora, branca, que não pôde aceitar aquele patrocínio por já estar relacionada a outra marca. Como ela era minha amiga, sugeriu o meu nome. E lá fui eu de novo, porque mulher preta não pode perder chance nenhuma. E, dessa vez, a resposta foi a seguinte: 'optamos por uma cantora que mora em São Paulo, para a facilidade dos vídeos'." Para Teresa, não houve dúvidas: não queriam uma mulher negra.

"Na minha infância, antes de eu conhecer Candeia [cantor e compositor carioca nascido na década de 30, Candeia é um marco na vida de Teresa. Segundo ela, ele foi o responsável por fazê-la entender e se orgulhar de seu lugar de mulher negra], eu conversava com Deus e perguntava por que que eu era preta", diz. Teresa se lembra de um episódio de sua pré-adolescência. "Na formatura da oitava série, fui escolhida pra ler minha redação. Cheguei antes pro ensaio. Quando eu saí, uns meninos me tacaram ovo. Eu estava de rolinho na cabeça, pra chegar arrumada na formatura... As pessoas se ofendiam muito de eu ser preta e tirar nota alta."

Acredita, no entanto, que há mulheres negras poderosas tomando o seu lugar. "Esse espelho tem que continuar. As crianças da idade da minha filha têm que se enxergar em algum lugar", diz. "Uma coisa que a live me trouxe e que eu agradeço é de ter diariamente esse exercício de me ver no espelho, de me achar bonita, de gostar do que eu falei. Ser uma referência é uma novidade pra mim."

Cria sua filha Lorena, de 11 anos, para se posicionar contra o racismo. "Ela precisa saber que isso existe." Alguns anos atrás, Lorena chegou em casa querendo prender o cabelo. "Alguém tinha falado que o cabelo dela era feio. Aí eu fui à internet e busquei um monte de mulher linda com o cabelo crespo. E perguntava: 'você acha mesmo essa mulher feia? Ela tem o cabelo parecido com o seu'."

Eu fui escolhida pra ler minha redação na cerimônia de formatura da oitava série. Na saída do ensaio, uns meninos me tacaram ovo. As pessoas se ofendiam muito de eu ser preta e tirar nota alta.

Teresa Cristina

Julia Rodrigues/UOL Julia Rodrigues/UOL

Política se discute

A bandeira do racismo é apenas uma das levantadas por Teresa. Sua live tem voz política bem clara. "Se algum 'bolsominion' entra na minha live, começo a falar que a Terra é redonda e eles saem rapidinho", diz.

Ela não perde oportunidade para criticar o governo, o presidente, os filhos do presidente e tudo o que possa estar relacionado a ele. "Na medida em que as improbidades desse governo foram aumentando, fui intensificando a quantidade de lives. Assim não sobra tempo para ler as más notícias", diz.

Está fazendo a quarentena em sua casa, no bairro da Vila da Penha, zona norte do Rio, onde mora com a mãe, de 80 anos, e com a filha. Mas diz que romperia o isolamento para derrubar o presidente. "Se me garantissem que ele iria cair, eu saía. De máscara, de roupa de astronauta, mas eu ia." Vascaína convicta — sua caneca do Vasco com cerveja gelada é uma marca das suas lives —, diz que morreu de vontade de se juntar ao grupo de corinthianos que se reuniram na avenida Paulista em um ato pró-democracia. "Coisa linda essa união das torcidas contra o fascismo. O fascismo é como aquela bactéria que está congelada num iceberg: a gente não pode descongelar", diz.

Teresa pra presidente

Bolsonaro

"Enquanto eu estou planejando minhas lives, eu não estou vendo o que é que o Bolsonaro falou, que tipo de ação o filho dele fez pra fugir pra polícia. Eu não vejo nada disso. Eu ocupo a cabeça pesquisando as minhas coisas. Aí alguém me diz: você viu o que ele falou? E eu respondo: 'não vi'"

Governo

"A gente está numa situação muito diferente do resto do mundo. É como se o mundo estivesse correndo uma prova dos cem metros e a gente correndo cem metros com barreira. Estamos no meio de uma pandemia sem Ministro da Saúde. Se me contassem, eu jamais acreditaria."

Covid

"Saber que nós temos 64 mil mortes [no dia 06/07] e que esse número é, na verdade, muito maior do que se divulga é uma coisa horrível. É como se caíssem dois, três aviões por dia. É uma coisa muito pesada. A maneira que eu vejo as pessoas banalizando a morte alheia me deprime."

Para o alto e avante

Como não há nada garantido, Teresa continua em casa. E fazendo lives. Diz que quando acabar a quarentena, vai entrar para o LA: "Os Lives Anônimos", brinca.

Mas quando isso acontecer, nada mais será como antes. Teresa já tem planos. Lança hoje, dia 20, o DVD "Teresa canta Noel: Batuque é um privilégio". Pretende viajar com seu show "Sorriso Negro" pelo Brasil e gravar um disco de canções autorais.

Vai, quem sabe, virar garota-propaganda de uma marca de cosmético e ser estrela do festival Queremos!, alguns dos sonhos já revelados nas conversas de todo dia. Vai dominar os palcos e ser reconhecida nas ruas de outras cidades além de seu Rio de Janeiro. Vai deixar com saudades milhares de fãs e amigos que, como eu, já não dormem sem Teresa Cristina.

Uma coisa que a live me trouxe e que eu agradeço é todo dia ter esse exercício de me ver no espelho, de me achar bonita, de gostar do que eu falei. Ser referência é uma novidade pra mim.

Teresa Cristina

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